terça-feira, março 30, 2004

Dicas de viagem 1 - El Salvador

[Artigo escrito sob encomenda para revista Venice, outubro de 2000, seção Trip and tip's]



na foto acima, Kevin Naughton, em foto de, quem mais ? Craig Petersen.

Primeira dica pra quem realmente quer conhecer as ondas de El Salvador: leve a Playboy da Sheila Carvalho e uma camisa do Flamengo.

Ou seria essa a dica pra Barbados?

Para El Salvador, é melhor levar o CD do Paulinho da Viola e o vídeo da Bandeirantes com o melhor dos bailes de carnaval. Não façam como eu, que em 95 comprei a passagem mais barata e fui obrigado a fazer umas 200 escalas até pousar em San Salvador, capital de El Salvador.

Chegando no aeroporto, ignore os 500 motoristas de táxi, corra pra cabine telefônica, abra o catálogo na seção ‘alquiller de coches’ (aluguel de carros), pesquise, pesquise e pesquise.

Do aeroporto até o balneário de ‘La Libertad’ são 25 minutos, ou pelo menos eram. A estrada é razoável - muito cuidado com vacas, cabras e porcos no meio da rua, sem acostamento.

Chegando no pico, uma direita descrita pelo viajado ex-surfista profissional Marcelo Bôscoli como “uma das sessões de Jeffrey’s Bay”. Melhor explicando: a onda lembra muito a parte de J.Bay conhecida como ‘Super Tubes’- é claro que em Jeffrey’s não existem porcos boiando n’água, nem hepatite A, B e C... O Povoado de La Libertad é muito tranqüilo, raramente tem o silêncio perturbado pelas rajadas de metralhadoras. A segurança no país é um fator determinante para o turista: todos os postos de gasolina, por exemplo, têm dois guardas tomando conta das bombas, devidamente armados com reluzentes escopetas -mentirinha... Na verdade, as escopetas não são nada reluzentes; são enferrujadas...

Lugar pra ficar

Em frente ao pico das direitas maravilhosas tem meia dúzia de 3 ou 4 pousadas para todo tipo de viajante: do pão-duro ao perdulário. Para o pão-duro, conhecido também como ‘comedido’ ou ‘econômico’, recomendo as acomodações que ficam logo na entrada do porto de La Libertad. São simples: uma cela, digo, um quarto com cama e... Só. Ah sim, tem banheiro coletivo, uma meia janela e custa 2 dólares o dia. Por módicos 50 centavos você pode alugar o ventilador da dona e, se souber negociar o CD do Paulinho da Viola, ainda consegue o colchão.

A alternativa para os que não têm pena do dinheiro do pai, que se matou pra conseguir financiar a passagem em seis vezes, existe o hotel - talvez haja outro nome mais adequado do que ‘hotel’, mas, com meu parco vocabulário e na preguiça de consultar o ‘pai dos burros’, fica hotel - dos bacanas, não lembro do nome, mas com certeza não consigo esquecer do preço. O hotel dos bacanas tem ar-condicionado, TV a cores com cabo, piscina, restaurante e custava 60 doletas a diária.

Outra opção é a pousada do Bob, um americano que passou a vida inteira hostilizando os ‘haoles’ e agora, com o negócio prosperando, trata seus clientes com tremenda cara-de-pau. A pousada do Bob é a mais bem localizada, em frente a oitava sessão da onda, que só quebra com a maré cheia e tem a água mais fedorenta da área. O restaurante do Bob é baratinho e muito honesto. Tem vista pro mar. O país inteiro é repleto de fundos de pedra e bandidos. Os dois são perigosos. A ‘Carretera Panamericana’ é a estrada que corta, literalmente, El Salvador. Esburacada como poucas no mundo é quase um ponto turístico e geológos do mundo todo vão pra lá estudar suas crateras. Mais uma aventura imperdível são os túneis sem iluminação nenhuma, quase um buraco nas montanhas - na realidade, um autêntico buraco nas montanhas.
O melhor surfista local é o filho do Bob, gente fina e bem camarada com os brasileiros.





Quase não existe ‘crowd’ em El Salvador, exceto nos finais de semana, quando hordas de boogie-boarders invadem as praias com suas temíveis saboneteiras. Os boogies também andam armados, suas armas, porém, são niqueladas, posso afirmar.

As ‘chicas’ salvadorenhas são muito simpáticas e, tivessem um pouco mais de sorte, seriam quase aceitáveis. Nada que alguns litros de “cerveza” ou tequila não resolvam....

Uma das grandes atrações do país são as espetaculares e luxuriosas mansões dos milionários que enriqueceram durante a ditadura, soa familiar?

Souvenirs

Não voltem pra casa sem antes tentar arrematar uma rara metralhadora russa, doada ainda na época da saudosa ‘guerra fria’ pela extinta União Soviética, vendida a preço de banana nos esconderijos dos guerrilheiros aposentados, fácil, fácil de achar!
Essa histórinha que conto agora foi determinante pelo impulso de visitar esse país extraordinário: Conheci um americano em Recife, 1993, e ele me falou sobre as direitas de La Libertad. John, o nome do gringo, contava dos três meses que passou em El Salvador procurando ondas. Nos primeiros dias, em plena guerrilha, surfou sozinho direitas perfeitas até não agüentar mais, quando um belo dia a polícia entrou no seu quartinho de 3 dólares e o acusou de ser espião da CIA, ou traficante de armas, não me lembro direito. Levaram o sujeito em cana, passou um mês ‘internado’e depois foi solto sem qualquer explicações. Você tem que adorar um país que trata americanos assim.
Não tem?

segunda-feira, março 29, 2004

Onda (clica aqui para comprar o livro)



Onda é síntese
do mar
borboleta é síntese
do ar

[ Extraído do livro "Concepções de frases em ninhos de água", Pedro Cezar, Rio de janeiro 2002, editora 7 letras - www.7letras.com.br ]

Uma mancha no espírito do surfe

[Glenn Hening é um surfista que entendeu a essência do que deveria ser a 'alma' - palavra tão mal interpretada - do surfe.
Dividir, compartilhar, era, e acredito ainda é, o princípio, meio e fim desse nosso bendito vício.
Hening é fundador do conceito de surfista preocupado com o futuro do planeta, com a Surfrider Foundation e agora, nem tanto agora, ataca com a Groundswell Society, uma comunidade de pensadores ouvindo e falando de assuntos que a imprensa ignora ou desconhece.
Clicando no título, voce é lançado direto para o saite e tem a chance de ler, em arquivos PDF, os temas do encontro de 2002. Me perdoem o texto em inglês, mas creio que a turma, se não domina, compreende.
Fundamental.
Como a água salgada.]



The Stain on the Soul of Surfing

by Glenn Hening


The locals had a reputation for short tempers, thuggery and a ruthless pecking order. That meant little to the invaders, whose ego-driven arrogance was fueled by a self-image saturated with superiority. The two sides clashed in a violent confrontation. The uninvited visitors were beaten back, and the locals showed them no mercy.

Now where in the world of modern surfing did this happen? Velzyland? Cactus? Palos Verdes? Burleigh? Stockton Avenue? The Canaries? The Ranch? Narrabeen? Could be any one of dozens of intense surf spots around the globe, couldn't it?

But no, the above is not about a specific example of surfer localism per se. It's about the single most violent episode in all of human history: the battle of Stalingrad during World War II. The Nazi army had advanced rapidly for a thousand miles deep into the Russian heartland when Soviet dictator Josef Stalin told his generals that there would be no more retreat, and that

they were to stand their ground to the death. And thus were revealed deep-seated human instincts of conquest, violence, and revenge, resulting in the deaths of almost a million soldiers and civilians in a little less than six months.

What greater contrast could there be? Warfare-to-the-death that destroys a city is about as far as you can get from riding aqua blue energy in warm water along beautiful coastlines, where the power and the visions provided by our mother ocean combine to make surfing an almost religious experience. However, if our sport/art is indeed so wonderful, then "surf rage" reveals something that, I contend, is born of the exact same primal instincts that caused ten thousand deaths a day during the siege of Stalingrad. That was man at his worst, and violence amongst surfers, blessed as we are by Nature, is pretty much in the same category.



Voce está disposto a dividir essas ondas ?


If you think that comparing Nazis and Soviets to surfers is a bit of a stretch, then consider the following from the Los Angeles Times dated March 26, 2000. Titled "Drought Desperation", the article relates the story of a battle between monkeys and humans when water trucks arrived at a drought-stricken trading post in northern Kenya. When the monkeys saw the water, they attacked so ferociously that the humans were forced to retreat as the primates quenched their thirst. But the humans re-grouped and fought back the simians with axes and machetes. Sounds like the first day of waves after a long flat spell at Sunset or Swamis or Kirra, no? And you can take the simile even one step further when talking about conflict over water: there was a once fight involving a machete at the Ranch, where gunshots have also been used to intimidate outsiders.

All this is by way of introduction to my take on what has been the single most shameful and disgraceful aspect of our sport/art for the last forty years. One has only to talk to those who have quit surfing in disgust, or those in the non-surfing public who are unable to comprehend how surfers can reveal such base human instincts when they are so blessed by the ocean, to understand how localism and violence have stained the soul of surfing.

In early April of this year Chris Bystrom called with the idea of my writing about "surf rage" in response to the recent assault on Nat Young. His account of what had happened was pretty depressing, especially since at the time I was writing up a summary of Surfrider's Clean Water Classic event at Rincon, where we are able to run a weekend contest in great waves without security or water marshals and with the full cooperation of all the local Santa Barbara surfers. (see accompanying article)

Yet here was Chris describing Nat's serious injuries caused by a conflict in the water at Angourie. So on one hand I was filled with the satisfaction of being a part of a wonderful event where hundreds of surfers cooperated in sharing great waves at one of the most crowded breaks in the world. But on the other I was sadly reminded that surfers are also capable of being reduced to the level of primates by their selfishness and lack of self-control.

Surfing is as pure a pleasure as anything we do on this planet. The beauty, the sensation and the physical challenge of riding waves are unmatched by any other sport. But surfing's internal conflicts are also unique. They affect our surfing lifestyle across the board. In fact, it seems as though our "culture" is bookended by bullshit.



No Quebra-mar ou no Arpoador, a frase se repete com a caligrafia dos semi-analfabetos

At the Neanderthal end, we have our mossbacks (a deprecatory term for old, set-in-their-ways sailors, referring to turtles who've been in the water so long that moss grows on their shells). These guys never actually live at the public surf spots they call their own, but since they usually have no where else to go in their lives, they resent anyone showing up at "their" beach, public be damned. When intruders start riding "their" waves, they start growling with indignation like bull walruses whose cows are being eyed by rivals. They rage with jealousy as if surfing was their substitute for sex, and their aggressive attitudes lead them to commit senseless crimes of passion when they cut off strangers, challenge them to fights, and worse.

At the other end of the spectrum, where professionals make their living off the sport, things are often no different. I have immense respect for Nat Young, a pioneer of advanced surfing equipment, a former world champion, a writer of surfing books, and an acknowledged leader of the surfing tribe for three decades. But Nat has always been aggressive in the water, and he lost it completely

when 18-year-old Luke Hutchinson got in his way. Now Luke is no angel either, and things escalated quickly. Today Nat is recovering from injuries sustained when Luke's dad lost HIS sense of membership in the human race and attacked Nat mercilessly. And that is only the most recent incident amongst the leaders of our sport.

There is the little-known episode involving Johnny-Boy Gomes, winner of $56,000 at a 1998 Pipeline contest organized by his friend Eddie Rothman. It was the biggest first-place check ever in a surfing contest, placing Gomes at the top of the heap as a professional surfer. But only a few months later, Johnny-Boy was told to go back to Hawai'i by community elders after attacking a young local surfer at a beautiful Polynesian reef.

And who can forget another landmark incident: the 1994 World Longboard Championships at Malibu. A veteran 'Bu kneeboarder didn't get out of the way fast enough when the contest started, and so Rick Ernsdorf was hospitalized after being held underwater by Joe Tudor and then having his face pummeled bloody by Lance Hookano.

If you consider that few, if any, veteran waveriders have not seen hostile graffiti, felt the rats-in-a-cage vibe of overcrowded surf spots or witnessed real violence, it becomes apparent that surfers all too readily reveal a deplorable strain of human character in their penchant for aggression over something given for free, a gift from nature that we use for nothing more than some momentary euphoria. We surfers forget that waves are living magic. The huge storms, the powerful winds, the great global routes of major groundswells, the graceful curve of protected shorelines and the symmetry of a wave peeling perfectly all combine to give us an unparalleled experience. And what do we do with it? For whatever reason: ego, low self-esteem, selfishness, or professional greed, it becomes all too easy for surfers to ruin our heaven on earth.

How can this be? We are like true believers fighting over who will take communion, pushing and shoving and cutting in line with an infantile "Me First! Me First!" attitude as we approach the altar where our religion is confirmed. And when we finally attain the holy moment and connect with the body and soul of our faith, what do we do? "Mine! Mine!" becomes our mantra. Just ask yourself, "When was the last time you saw a pro surfer get a great wave, but then paddle back out slowly so that others could share in the same experience? When was the last time you saw a local get out of the water so that the waves would be less crowded for others? When was the last time you saw a good surfer give a kook a wave?"

Until these instincts become definitive of our surfing culture, starting with the surf industry and those making a living off the sport, surfing will suffer from a cancerous sore that won't go away. The pro tours, contests, magazines, videos, surf star reunions, big-wave exploits, and guided trips to remote perfection will all mean very little until the leaders of our sport/art publicly make a commitment that says, "Enough! We leave our egos on the beach, and we enter the ocean with humility and a true sense of brotherhood." Until that day, and until the mossbacks and thugs at a hundred spots around the world wise up to what surfing is supposed to be, the next embarrassing episode of surfers as Serbians is just around the corner.



Johny Boy tem fama de mau, mas saiu corrido do Tahiti com o rabinho entre as pernas


Allow me to state my credentials on the subject. I'm writing this in our family room with a view of Oxnard Shores, a place I surfed for the first time in 1968. It is not a wave for the timid when it's good. Top-to-bottom barrels unload over erratic sandbars, and you have to be in good shape to get any waves because the sets can push you up and down the beach a hundred meters at a time. Now that I have lived here going on ten years, I often find myself the first guy out at dawn and one of the few regulars when it starts maxing. So I guess that makes me a local at a place that once intimidated outsiders. Say the word "Oxnard", and the connotation amongst California surfers is pretty negative. But those days are over at the Shores, and that's the way I like it. I want the beach where my children play to be free of the contamination of localism, because I've seen enough of it, and I don't want to see any more.

I've dealt with several versions of "surf rage" during my surfing career in California, including Topanga in the 60s, Silverstrand and the Ranch in the 70s, and Hazard Canyon in the 80s. I've had to face it down in the water and on the beach, and based on personal experience, I've found that surfers "infected" with localism can be surprisingly vicious S.O.B.'s. They can ruin a surf spot in a way that reminds me of floating garbage poisoning the sea.

Modern surfing points to Duke Kahanamoku as its father, yet his aloha version of surfing is about as far as you'll get from the heavy scenes caused by the pools of hate that have floated in lineups around the world: the toxic spills of localism. Of course, if we as surfers look to Polynesia for our heritage, what do we do when we see a history of raids, massacres, and internecine conflict throughout the South Pacific? Are we doomed by cultural genetics to duke it out over our tiny slices of paradise and the short-lived waves we ride?

Polynesian traditions aside, the fundamental problem with surfing will always be how powerfully it drives the ego. There is nothing inherently social in surfing's purest moments, because riding a wave is 100% personal. It is all about your preparation, experience, timing, strength and agility. There is nothing 'team' about it. So cooperation and humility takes a back seat to aggression and arrogance. Left unchecked, it gets to the point that we dare think of ourselves as masters of the waves after a good ride, and we usually paddle back out as fast as we can for another one. As long as you don't have to deal with other surfers and their egos and craving for waves, getting one good ride after another puts a surfer on top of the world.

But as with every powerful experience that involve self-inflation amongst individuals in a crowd, surfing can go from the sublime to the ridiculous in an instant, from euphoria and elation to fear and survival, from a generous free natural environment to a monstrous example of human greed and enmity. Surfers are the blessed sons and daughters of Kahuna gliding through Neptune's kingdom, until they start acting like troops of baboons defending territory against outsiders while engaged in internecine conflicts typical of lower order primate communities.

Another apt comparison would be to the behavior of the sea's most instinctually violent species, predatory sharks. My first experience with a real local, not some land owner or unemployed carpenter or out-of-shape big mouth, was at Lennox Head in Australia, part of the territory of a 15' tiger shark. An apex predator, it feared nothing, and we got out of the water pretty quick the times he was spotted feeding on the larger fish in the area. Sharks are a highly territorial species, in contrast to another apex predator, the broadbill swordfish, well known for its transoceanic migratory routes. Both species developed two hundred million years ago, and have remained essentially unchanged for the past fifty million years. But while the swordfish is an inspiration for speed and agility, the shark conjures visions of merciless pain and death.

So when you consider that some of the worst "surf rage" occurs in some of the world's best waves, it seems that surfing often oscillates between the wondrous hydrodynamics of the swordfish and the brutal turf tactics of the shark. One minute you're flying over the water in a perfect natural setting, only to have the waves turn into the vicious streets of South-Central L.A. As Ice-T said, "Wear a wrong colored rag, go home in a body bag."

Now, surfing is as far from the inner city as you can get. Yet having a colored wetsuit or board that ID's you as an outsider can make for real problems at some surf spots. This is truly absurd. At least in the 'hood there's a reason for the violence: unemployment, fatherless families, poverty, hopelessness. What reason do surfers have to throw down? Surfers are as blessed as any people on earth, and so it is particularly tragic when their egos are controlled by the corrosive evils of selfishness, greed, and jealousy.

I don't know if there is another sport/art/lifestyle on the planet that offers as phenomenal an experience as riding a wave and yet is cursed with human behavior in a classification with sharks and gangbangers. Surfing is an amazing thing to do, but seen through the prism of localism, it comes off looking pretty lame.

Look at surfing as a sport, and consider what it would be like if tennis was similar to surfing. You and I could be beginners just starting to volley when two hot-shot pros could show up and simply muscle us off a public court with taunts and threats while aiming powerful serves at us until we leave. Seen as an art, surfing fares no better. Surfers with bad attitudes are like graffiti vandals with overloaded minds aggressively chasing their fix of identity and recognition. In both versions, the surfing lifestyle is twisted into a joy-less, anxiety-driven fear of outsiders. Based on numerous personal experiences, that's what I've seen happen on the beach and in the water time and again.

My first confrontation with die-hard locals came at Topanga in the late 60s. I worked for Natural Progression in Santa Monica, and since they all rode our boards, they had to tolerate me. But I still got the "Out! Out!" when they saw me walking up the beach. I ignored the warning and got away with it. But when it came to unknown trespassers who didn't pay attention, the warning was followed by rocks and taunts and more rocks. And if an intruder ruined the wave of a local, things got really ugly. Of course, the boys' excuse was that they were defending a good wave from hordes of LA and Valley surfers. But in the end the Topanga locals lost, since all their houses were torn down to make way for a public parking lot and lifeguard station.

The Ranch was a similar situation. Being a boater or a guest, my tenuous connections smoothed the waters to a certain extent. Although the vibe was still in the air, it did not ruin the place for me. Not so for some friends of mine, including Angie Reno, one of surfing's great talents, who in 1971 had to fend off a machete attack from Jeff Kruthers, long time Ranch local who now, ironically, sells Ranch parcels. So I guess if you have the cash, you're in. When I was up there just last year with Rick Vogel and Yvon Chouinard, both parcel owners who have surfed the Ranch for decades, we couldn't surf Rights and Lefts. Seems that given who was out at R&Ls that day, showing up with even one guest was verboten. Yvon put it bluntly, "I don't want my tires flattened again." So we had to settle for surfing in thick kelp at an empty spot a mile away.

The Ranch brand of localism continues to be defined by wealthy owners and their doberman surf bro's. This is in contrast to Oxnard, a working-class town with poverty-driven gang problems and high unemployment. As opposed to the privileged sniffiness of Ranch mossbacks, the worst locals at Silverstrand were usually unemployed construction workers or cholos who didn't even surf. In fact, we quickly learned that surfers in the water were often the least of our problems.

Today it is nowhere near as bad as when we wrote the book on surfing the place by avoiding locals who jacked up the unsuspecting and the innocent. Being "southers" from Santa Monica, we'd park on side streets and chat up residents into watching our cars. In fact, we pioneered the peaks in the middle of the beach because the north jetty parking lot was just too risky. Unfortunately, former Malibu great George Szigeti learned that lesson the hard way. After a great session, he got out of the water only to find four slashed tires and every window of his new VW bus smashed - and a group of thugs waiting for him! So we had to be alert, and although we still had to deal with some real losers, when the waves got big we'd have the place to ourselves.

The Ranch and Oxnard have earned bad reps for localism, but Hazard Canyon, in central California's Montana De Oro State Park, was during the late 80s the worst cesspool of selfishness I ever experienced. Best on cold winter mornings with freezing winds whistling down the canyon, the place is hostile to begin with. With a small take- off zone and a thick, peeling barrel that made drop-ins extremely dangerous, the prevailing atmosphere was intimidating and tense. And since Park authorities were usually miles away, the Canyon was a set up that really stacked the deck against visitors. The regulars were no nonsense tough-guys who could surf the place so well that you wouldn't dare look at a wave they wanted. But even if a local couldn't surf that well, he would still be a factor thanks to his longevity at the place, thick arms from pounding nails, or just plain shitty attitude driven by his own personal failings.

Lead by Whitey and JG, it was a crew that reveled in its reputation for being violent assholes. Bradley Jordan, the best surfer ever to ride the place, took five years and several fights to break into the lineup. I lucked out: I knew Bradley when he was a grommet hanging around the NP shop in the Santa Monica days, so I gained entry through him. No one ever got in my face, although what I saw and heard directed at innocent strangers made me cringe more than once in the three years I surfed the place.

As it turns out, I went back a few years ago, and things had changed to a certain extent. Whitey was still whining, the takeoff zone was tight with carpenters and roofers with attitude to spare and the waves were merciless if you made a mistake. Yet, the threat of violence did not hang heavy in the air, as if the crew had finally wised up a little bit.

But unfortunately, the primal instinct of localism rarely goes away on its own. Consider the Rockside boys of Port Hueneme. Their surfing traditions came from a tainted gene pool where localism was handed down from a generation of has-been longboarders to young high school dropouts turned wanna-be surf stars. These guys were real jerks - until one of their homies was convicted on assault charges when he attacked a teacher from Santa Monica surfing an empty peak west of the pier. The guy got probation that prevented him from surfing the place for three years. But genius that he was, he was right back in the water a few weeks later, only to have a cop pulled up as he was getting out of the water who took him straight to jail to do his time for the assault and violating probation. It was poetic justice that a Rockside rockhead did time for being not only violent, but stupid, too.

The fact that a surfer was put behind bars for being violent says that the worst of the localism as I've known it is on the retreat. One reason that things are changing is California Penal Code sections 243 and 245 dealing with aggravated assault. Victims are now calling the police, and in recent years the law has stepped in to protect the innocent and charge the guilty. Witness what happened in Palos Verdes or the assault in San Diego two years ago. Guys got arrested and convicted, and newcomers were able to surf without threats from mossbacks giving 'em stink-eye and worse.

Another reason that "surf rage" is abating somewhat is the fact that yesterday's surf hoodlums have grown up and now have kids, and if there's one thing that's going to change the life of an OG (LA slang for 'original gangster'), it is having to be a father. A third reason for localism's overall decline is that, over the past five years or so, dilution has been the solution to the pollution of localism. There are now so many surfers everywhere that, as when Topanga was turned into a public beach, who is or isn't a local is now a moot point. Like King Canute ordering the tide to stop, the hard-core locals of yesterday are being sweep into submission by a constant tide of recreational surfers spreading around the world.

Riding a wave is a perfect opportunity to test our human nature, face up to our failings, and focus on bringing out the best in ourselves. Consider the non-violent example of Ghandi. He understood the devastating effects of an unchecked ego. For ten years he resisted becoming the leader of India's independence movement until he felt ready to be a powerful, yet selfless, man of inner peace. His autobiography, "The Story of My Experiments with Truth," is a wonderful inspiration in dealing with the subjugation of ego.



Locais de verdade


This is good news. Surf spots are extra special natural environments because they give people a chance to play with the ocean's energy. There is no cause for selfish and sometimes violent behavior over waves that belong to no one. As the legendary North Shore surfer Owl Chapman once said, "Be nice, share a wave, give a smile, say Hi". I couldn't agree more: a friendly vibe in the water makes the surfing experience complete.

So the next time you're tempted to vibe someone you don't know or take more waves than you deserve, consider things from the other guy's point of view. Only when courtesy and sharing define our behavior is it possible to fully realize the promise of surfing. Show some respect for Mother Ocean and leave your ego on the beach. If you're a visitor, the same rule applies: don't be confrontational, but at the same time, remember that you owe the ocean a lot, so don't turn tail and retreat without trying to work things out verbally. Localism is a toxic spill that has contaminated a lot of surf spots, and sometimes you have to help in the clean up.

If you really have surfing in your heart and soul, you simply have to act in the name of civility in the water, starting with an attitude of cooperation and sharing. If it's too crowded, get out of the water and wait on the beach, or surf someplace else. Battling the pack endlessly brings out the worst in people. Same goes for any territorial feelings you might have about your favorite surf spots. There is no excuse for desiring euphoria so much that violence becomes a way to get it. This aspect of surfing simply has to change, and that's all there is to it.

As Charles William Maynes recently said with reference to Bosnia and Kosovo, "Society . . . depends on deference, deference to tradition, authority, to law, to treaty commitments. If you lose that, the only thing you've got left . . . is force." In surfing, we have no governing authority, and the times we've resorted to criminal law to resolve our disputes have been excruciating embarrassments to the sport as a whole. So we must defer to each other in the water and respect the best traditions of riding waves: the traveling, the welcoming of visitors and the sharing of waves exemplified by the early longboarders. Thus, we must commit to personal treaties of peace with all our fellow surfers if any of us is to truly deserve the joy to be found in surfing.

Yelling to get waves, challenging guys to fights on the beach, pushing off shoulder-hoppers, giving strangers stink-eye, dropping in on kooks: Lord knows I've seen and done my share. But let me tell you from personal experience: a surfer's soul feels much better when you really make a pacifist attitude a part of your surfing identity. Always being generous and cooperative, especially when the waves are good, can be a long, and difficult lesson to learn: ask Nat or Johnny-Boy. But if we all behave as if our children are watching us surf, we will someday cleanse the stain from surfing's soul, and the localism and violence of modern surfing will be nothing more than sad chapter in a distant past. I may not see it, but if there's anything I can do about it, my children will.


* * * Glenn Hening started the Surfrider Foundation in 1984. He currently publishes an annual "Groundswell Society" covering ideas and projects of interest to "Renaissance" surfers. This article first appeared on SURFLINK.com. Sections of it were developed for a series of essays that appeared in the second edition of Glenn Hening's Groundswell Society Annual Publication. The third edition is in the works and will be available this fall. Contact Glenn for more information at GRNDSWEL@aol.com

quinta-feira, março 25, 2004

Pororoca no Níuiorquetaimes (NYT) clica aqui para o artigo original

[E o NYT, um jornal com fama digna de Pantaleão, quem diria, publica mais uma das suas... A foto é do fotógrafo e zagueiro Ricardo Gomes]






SÃO DOMINGOS DO CAPIM JOURNAL

Far From the Ocean, Surfers Ride Brazil's Endless Wave

Responding to nature's challenge, surfers have been gathering here since 1999 for the Brazilian National Pororoca Surfing Championship. The tournament, which this year concludes Tuesday, was the idea of a 35-year-old surfer, Noelio Sobrinho. He is so obsessed with developing the new sport that he has the word pororoca tattooed on his left arm, he said, "so that it can be close to my heart." (leia mais clicando no título)



JET SKI TOW-IN FEVER (clica aqui para ler o original!)

[Essa notícia foi 'emprestada' do saite do Sarge, fotógrafo e repórter boa-praça que sempre levanta a bola da brasileirada - desde os tempos da dupla dinâmica.
Clica no título para ser direcionado ao saite do Sargento]



Kelly Slater was featured on the TV news last night, recalling one good long pit, buzzed by a chopper just 30’ above. Joel Parkinson featured on the wave of the day on another channel, recalling this morning, “Kelly called me on to it, I think – I’m not sure if he said ‘go’ or ‘yo’, but it doesn’t matter because he knows that as a local I’d have kicked his butt anyway. Coming off the bottom it was just a foamy monster, but I kept with it and it ended up turning into a nice clean one, about six foot, and I scored a good 10 second barrel, came out and claimed it, and then got another one. It was pretty good!”


O Fantasma

[Texto publicado no extinto promissor jornalzinho chamado Nuts, carinhosamente editado pelo Edinho, Zózi e cia ilimitada. O nome da coluna era 'Morou ou boiou'. A ilustração do Captain Goodvibes foi gentilmente afanada do saite http://members.ozemail.com.au/~xbum/]



Acordei cedinho e saltei da cama meio assustado com o esporro do Mar.
O hotel ficava dois quarteirões da praia, a turma toda da favela hospedada lá, economizando…
Nem esperei o elevador e desci de escadas, correndo, chegando no térreo, me emputeci quando vi que o Sol já tinha nascido.
Nicky Wood chegava da noitada, totalmente estragado, vomitado, olhos roxos, deu um esboço de sorriso no canto da boca mole e seguiu pro seu quarto.
Um saindo para a dura estrada de aspirante a surfista profissional e outro, pneu no chão, voltava com a faca e sem o queijo.
- Merda de vida…pensei.
Isso foi no final do ano de 1991, 5 anos depois do ‘Fantasma’ ganhar notoriedade quando com apenas 15 aninhos arrastou o Bell’s, batendo no Curren e no Carrol, inventando o floater funcional em um grande evento e fazendo a gente acreditar em futuros brilhantes e bolos de dinheiro.
Se não me engano ele ainda era ligeiramente mais novo que eu – a humilhação crescia.
Wood tinha o apelido de ‘Fantasma’ porque não gostava de aparecer em público, poucos amigos, tímido feito um avestruz.
Então, para aguentar a dureza do circuito mundial, Nick cheirava pó sem parar durante todo tempo que passava no Brasil.
Sobrava companhia para o rapaz. A A.B.O.G nunca deixou um gringo na mão em canto nenhum do país, principalmente em Sampa, no Guarujá, onde os poderosos vangloriavam-se de suas conexões excusas como se mérito houvesse. Mulheres espetaculares rondavam os Vips na esperança de uma carreira em duplo sentido.
Sim, malandragem, este é o surfe profissional.
Bem vindo ao seu pesadelo, diria Matt Warshaw.
Cheguei no cantinho das Pitangueiras (por que o plural ?) e as séries lambiam a ilha desde lá de fora.
- Fudeu…
Como de hábito, eu já tinha perdido, mas ninguem me tirava da praia até que o campeonato terminasse, queria ver como cada um dos feladasputas que me ganharam saíriam-se naquelas condições.
O plano era voltar pro hotel, esperar eles servirem o café, a partir das sete, e fazer um surfe nas esquerdinhas que me esperavam em frente a casa do Dragonfly.
A corrida pelos primeiros lugares no ranking da ASP estava entre o sempre consistente e nada animador Damien Hardam, Brad Gerlach, o artista, Barton ‘Fink’ Lynch, Rob Bain e Sunny, quase da idade de Wood, um ano mais velho.
Durante o Alternativa, aqui no Rio, Sunny tinha tudo para iniciar um ‘Tour de force’, prestes a chegar no Havaí, o circuito pegaria fogo, mas uma infelicidade o roubou o título, torcendo o joelho, deixando o caminho livre pro Teco sacudir o troféu por cima dos cachinhos loiros – o primeiro de sua carreira, aqui com um único sentido.
Entra a final do Hang Loose n’água, mar esquisito, fechando, pesadinho, dentro do que é possível ser pesado para as ondas do Guarujá, Richard ‘Dog’ Marsh, Luke Egan, Fábio Gouvêia e o goiaba do Nicky Wood.
Sem aparentar muito esforço, Wood passeia pelas ondinhas de dois metrinhos, uma bomba de backside pra lá, um floater de front pra cá…
E voilá!
Poucas horas depois ainda no hotel, Wood tinha 10.000 Doletas em dinheiro vivo no seu bolso e estava pronto para a auto-destruição que começaria em 15 segundos…ou algumas horas quando chegasse no Rio para curtir cada centavo e depois seguir para o arquipélago dos Reis.
Matt Hoy, Luke Egan e Shane Powell o convenceram de voar direto para o Havaí e tentar se manter nos top 16.
E eu, sem um puto no bolso, ia para a segunda caída, planejava uma semana de favor na casa do Dragão e fazia as contas pra ver se dava pra correr um campeonatinho em Torres em Dezembro….

Moral da História – quem tudo quer é sempre melhor do dois voando.

quarta-feira, março 24, 2004

Drive Thru Brasil



A.B.O.G. em polvorosa no Rio de janeiro.
A lista deixa a horda agitadíssima!
Aviões fretados de São Paulo aterrisaram no Santos Dummont para a noite de gala.
Veio Kalani Robb, veio Ozzie Wright, veio Shane Dorian, veio Donovan Frankenreiter, veio Greg Browning e veio Taylor Steele, filmando tudo para a série "Drive Thru" que, depois de passar pelo Japão e Austrália, tem agora o capítulo Latin América.
Os cabras vieram do Panamá, onde 4 dias foram mais do que suficientes para fazer as imagens que precisavam e, segundo fontes do QG da A.B.O.G. carioca, tiveram muita sorte e surfaram ondas espetaculares - confessou Taylor Steele à um ardoroso fã.
Na chuvosa noite de terça, dia 23, o articuladíssimo braço da A.B.O.G. armou rapidamente um pocket-show, mais conhecido como show de bolso, para Donovan e seus amigos fazerem uma jam session (que seria facilmente traduzido no SporTV para sessão geléia) na lanchonete do Surf Adventures, O filme.
Daqui a turminha parte para o Chile, para tristeza geral dos milhares de adoradores, porque aqui no Rio, lamentamos, já deu o que tinha que dar.
Espera-se em breve uma associação para inaugurar uma catapulta no Leblon entre o surfista e homem-bala Marcos Sifu e seu sósia australiano, Ozzie Wright.
Rafael Mellin, o Taylor Steele brasileiro, recebeu comovido a confissão do próprio que se considera o Mellin americano.
Rumores que a Lanho fechou contrato com a Poor specimen para produzir um novo filme sobre a vida e obra do lendário surfista da Visconde de Albuquerque, Eduardo "não me chamem de Chatô!" Chalita, estrelado por Romário, no papel de Dudu e Betty Goffman no papel de Neridah Falconer.

The Far Shore - por Kevin Naughton




The best part about coming home from a trip was showing all my 8mm film footage to friends. I'd splice together any bits of celluloid that weren't blurred beyond recognition and create a little film diary of the places we'd been and the waves we'd scored. Usually, the films were shown to a raucous audience who were all to happy to have a film--however bad--premiering as another excuse to party. After one or two showings, interest waned and the 8mm reels were tossed into a box like bottles of cheap wine (the beverage of choice at those parties).

segunda-feira, março 22, 2004

Canções para Setembro

[Escrevesse em inglês, Gonçalo seria reconhecido como surfista que melhor traduz essa nossa melancólica mania de reconhecimento.
Gonçalo Cadilhe partiu para uma volta ao mundo limitada por terra e pelo Mar, de onde escreve colunas tão humanas quanto fantásticas para a revista Surf Portugal, a melhor publicação para quem tem algum apreço pelo idioma, e para o jornal Expresso, em sua revista semanal.
O texto que tenho o prazer de dividir com voces foi escrito antes da jornada, quando a coluna ainda chamava-se "Pulsar das marés" - agora a maré pulsa em "sete mares".]



Canções para Setembro

Ela era a menina que vem e que passa no caminho para o mar. Era a namorada do Verão, dos dias de sol sem vento, das praias sem barracas escondidas nas falésias. Havia sempre um perfume de pele jovem e bronzeada no contacto com o seu corpo, um sabor a sal nos lábios quando beijavam, um reflexo nos olhos dos reflexos de luz no mar.
As ondas eram poucas, ondas de Verão, a prancha tinha menos uso dentro de água do que fora, espetada na areia. A prancha era quase um adereço, hoje diz-se um “optional”, servia essencialmente para dar consistência cromática a esse amor de meninos quase adultos. Os sorrisos, os corpos perfeitos da adolescência, os calções de banho coloridos, a leveza dos passos no caminho do mar e a prancha pintada com tintas primárias eram peças colocadas numa disposição estática e derradeira como a moral dos mosaicos bizantinos. Só que a resina, a fibra e a cera ficavam a apodrecer ao calor, mas quem se importava?
Ela era a menina dos cabelos queimados pelo sol e das t-shirts gravadas com figurinhas de ondas enormes, mas a temporada não era de ondas grandes, o mar não exigia dedicação nem coragem, só presunção e aparência. Faltavam meses para que as coisas se tornassem sérias, e quando chegasse esse momento o namoro iria perder a inocência. Não tinha ainda havido tempo para discussões, amuos, desilusões, enganos, mentiras. O Verão é demasiado curto para dar tempo a que outras pulsações subam à superfície, o amor de Verão é como navegar em águas doces e suaves ao luar.
Ela sentava-se sempre na linha da maré à espera, vivia a praia com a mesma intensidade com que vivia o namoro do Verão. Dizia que nunca poderia habitar longe do oceano. Sentada na linha da maré a olhar o mar, parecia aos que passavam na estrada uma sereia frágil e dependente.
Ela estava na idade em que as mulheres são perfeitas, em que os defeitos são apenas características, e qualquer característica passa por virtude. Ele sabia, ou talvez só pressentisse, porque eram ambos demasiados novos para saber, que ela ia deixar uma marca, que as semanas iriam depois pesar como se tivessem sido anos. Eles não sabiam, mas o Verão vale tanto numa paixão como todas as outras estações juntas.
Vieram depois as ondas de Setembro, e o frio das manhãs estalou a transparência cristalina do amor de Verão. Ele aparecia menos, chegava atrasado, estava com a mente algures, a paciência faltava. A intensidade das horas no mar no Outono era muito superior à intensidade das horas na praia no Verão. A idade não permitia atitudes comedidas, ele não soube direccionar os impulsos: toda a fogueira que arde na alma agora ficava reservada para o surf, não guardou nenhum bocadinho de fogo, nenhuma labareda, para o amor. Foi assim naquele Outono, é assim naquela idade. Demorava um ano para o próximo Verão, e quem sabe quantos anos ainda até a cabeça assentar...

***

Encontrei-a por acaso há dias. Eram as duas da tarde dum dia de chuva de Agosto. A menina que caminhava num balanço ainda hesitante para o mar é hoje uma mulher com os pés bem assentes na terra firme. Vive no Alentejo, entre searas e horizontes de luz. Tem dois filhos e um marido-amante no centro da sua vida. É feliz. Ainda canta, com a guitarra, a dicção impecável e a intensidade intacta, as canções de Jacques Brel e algumas bossas novas. Canta no alpendre, ao entardecer, quando o calor acalma, o marido regressa e a brisa volta a ondular as ervas das colinas do Alentejo. “Olhar para as colinas mata as saudades do mar”, disse-me com uma pontinha de mágoa nos olhos, com aquela tristeza de quem se apercebe à queima-roupa dos anos que já passaram. Eu retribuí a mágoa do olhar e fiquei em silêncio a pensar em tudo o que podia dizer, a pensar nas vidas que não tive, a pensar que aqueles filhos podiam ser meus, aquele marido-amante podia ser eu, aquelas colinas a ondular com o vento podiam ser tudo o que me restava de mar.
Fica sempre tanto por dizer. Tu tens a tua família, a tua música, a tua quinta, eu ainda tenho as ondas de Setembro. E as paisagens do mundo à minha espera, para ir atravessando vezes sem conta, tentando não olhar para trás.
Gonçalo Cadilhe

Hino do Nofx

Straight Edge
[essa cançãozinha serviu de hino para uma geração que deixava de ser perdida para encarar a vida de frente- sóbria, caretona -, muito mais louca do que a anterior e seus excessos. O link acima leva pro saite do Minor Threat, bandaça de Washington DC, que influenciou meio mundo que queria, e fez, muito barulho nos anos 80/90, entre eles Bad Religion e o Nofx, que nos brindou com uma versão sensacional de Straight Edge. O líder do MT, Ian Mac kaye, não aguentou quando as hordas começaram a simpatizar demais com a banda e largou tudo no auge para formar o Fugazi, uma banda anti-anti-qualquer-coisa.
Fugazi vale outro texto.]



I'm a person just like you


But I've got better things to do


Than sit around and fuck my head


Hang out with the living dead


Snort white shit up my nose


Pass out at the shows


I don't even think about speed


That's something I just don't need


I've got the straight edge


I'm a person just like you


But I've got better things to do


Than sit around and smoke dope


Cause I know I can cope


Laugh at the thought of eating ludes


Laugh at the thought of sniffing glue


Always gonna keep in touch


Never want to use a crutch


I've got the straight edge


- MINOR THREAT 1981

domingo, março 21, 2004

A corrida de fera

[Esse texto vem da coluna "malandragem é o seguinte", em 1999, minha estréia virtual, que se deu pelas mãos do grande amigo Zé Augusto Aguiar, na forma de um imeio/coluna sem pé, mas com cabeça]

Tomando o café da manhã na padaria da esquina - hábito de carioca,
independente de classe social - fico tentando entender porque diabos o
pão é sempre seco feito pedra-pome até a última mordida, quando,
subiatmente, toda manteiga que parecia não existir, comparece em
impensável quantidade num tasco tão minúsculo de pão. Observo com certo
desdém a manteiga dependurada, pingar no pires.
Confesso que um dos motivos principais de ficar parado, em pé na esquina
em frente ao meu prédio é uma nova vizinha, que nem é tão nova e nem tão
vizinha, mas mora perto. E é um pedaço de bom caminho, deixemos os maus
caminhos pra lá. Já reparou que essas moças que são muito bonitas,
demais da conta, andam sempre apressadas ?
É o medo do assédio, do cortejo...elas cansaram disso.
- Coisa mais linda !
- tudo isso é seu ???
Cansaram...
O que me leva a pensar na famosa “corrida-de-fera”.
A corrida-de-fera é uma modalidade não reconhecida pelo comitê olímpico
de...corrida. É uma exibição.
Calma que eu explico: Já repararam naquele surfista que acha que surfa,
pelo menos umas dez vezes mais do que realmente exibe em pé na prancha,
quando sai d’água ?
Toda praia tem um desses.
O cara chega na praia com duas, ás vezes três, pranchinhas debaixo do
braço, barraca, dezoito roupas de borracha...
entra n’água todo faceiro, dá o showzinho dele e sempre, prestem bem
atenção, sempre que sai do mar, dá uma corridinha inútil, como se
houvessem hordas de fãs atrás dele.
Toda vez aquela corridinha....
Dependendo da ocasião, a carreira pode simular um tremendo esforço, ou
uma grande satisfação, ou ainda, uma verdadeira luta do homem contra a
natureza. Tudo safadeza.
Na verdade os malandros querem demonstrar um compromisso com a difícil
tarefa de ser ‘fera’.
Não pensem que é fácil ser ‘fera’, ou pior ainda: ‘fera-braba’.
São inúmeros compromissos com o fiel público: uma imagem para zelar,
autógrafos até doer as mãos, mulherem implorando por atenção,
jornalistas ávidos pela palavra genial do ídolo,
‘iiiii....eu....hum......só.....queria.....realmente ( sempre tem um
‘realmente’, um ‘extamente’ metido na frase ), agradecer.....
meus...hum...patrocinadores......valeu ! ’
E sempre aquela corridinha insuportável. É quase impossível rastrear
aonde exatamente começou a corrida-de-fera. Corre a lenda que foi em
Natal, final dos anos setenta. Mas existe uma forte corrente que aponta
para as praias da dourada Califórina final dos 60. O grande fera tem que
desenvolver uma corridinha característica toda sua. De cabeça abaixada,
ou erguida, com os braços pra baixo, com cara de puto, ou face contraída
mostrando clara determinação, todos precisam transmitir uma mesagem com
a corrida-de-fera.
“Me deixem em paz !” quer dizer um. “Viram minha última onda ? “ diz
o outro. “Voce de bikini branco, topas ???” pensa o terceiro....Uma
regra importantíssima é jamais olhar para a galera, jamais ! Um
verdadeiro ‘fera’ é circunspecto, concentrado. Não dá bola pro que os
outros possam pensar.
É fera e tá acabado.
A verdade é que, ao assistir um bom dia de surfe, debaixo da sombra de
uma árvore, com a cabeça feita, não tem coisa mais engraçada do que
ficar mangando (debochando, como dizem lá pra cima...) dessas figuras.
Surfe no pé, Zé.
Té jazz...

sexta-feira, março 19, 2004

Monossilábico (clica aqui para comprar o livro)



Saiu do mar vestido de água
que a linguagem se derramava pela boca
o sal se aninhava purpurina nos horizontes da teste

maresia carregava seu andar
enquanto o vento ia se envergando até onda...

as pessoas diziam que ele era monossilábico
monossilábico era o olho das pessoas

[ Extraído do livro "Concepções de frases em ninhos de água", Pedro Cezar, Rio de janeiro 2002, editora 7 letras - www.7letras.com.br ]

quinta-feira, março 18, 2004

Ipanema é o lugar

Ipanema é o lugar

Numa roda de amigos, final de tarde, sentados em frente ao Ceasar Park Hotel, um dos camaradas levantou o copo de requeijão cheio de cerveja e bradou: - Um brinde à Ipanema!
Os outros 4, pegaram o copo com certa lentidão - afinal, era a décima terceira ou décima quarta garrafa consumida...- Levantaram preguiçosamente e brindaram.
- À Ipanema!
Puta que o pariu, falou o mais velho e mais rabugento, olha aquela esquerda ! Todo mundo virou com surpreendente rapidez para olhar a onda que quebrava em frente a Maria Quitéria em direção a Garcia d’ávila.
Uma tremenda morena que passava exatamente na mesma hora que a turma admirava a coisa mais linda da praia se derramando no mar, ficou frustrada pela isenção de cortejo .
O mais novo pensou alto: É foda mesmo...Ipanema tem altas ondas.
E antigamente dava muito mais. Continuou o magrinho sentado na ponta mais perto do quiosque pra nunca deixar faltar cerveja na mesa com os braços longos e olhar comprido. Nos anos setenta era o Pier, perfeito de qulaquer tamanho e reinava a maior doideira nas dunas da Gal.
Quando detonaram o Pier, a galera se espalhou pela praia e o surfe era em frente a farme , na Aníbal ou na vala da Montenegro , que hoje chamam , com muita propriedade, de Vinícius de Moraes. Salve o poetinha !
- Salve o Poetinha! brindaram todos, contabilizando a décima quinta ou décima sexta ampola.
-Lembra do Valdir? Perguntou o gordinho que enxugava os copos feito um ralo. Ninguem entubava como aquele cara... morava ali embaixo, perto da Henrique Dummont.
- E o Maurinho?
- Puta que o pariu \!!! suspiraram juntos os 4, como quem visse Mauro Pacheco arrepiando as direitas grandes nos mares que só ele caía, sozinho, em meados do 80. Mauro tinha 17 anos quando ganhou os dois campeonatos mais importantes do Brasil naquela época: o de Saquarema e o de Ubatuba. Se tivesse ranking ele ganhava...
- Ele ainda pega as ondas, aí na frente. Tem um filhinho lindo. Com o sangue dos Pacheco nas veias o guri vai surfar pra cacete, levo a maior fé.
Agora essa rapaziada nova só quer saber de malhar e lutar jiu-jitsu...falou o ranzinza, desapontad. Eu tenho uma teoria: nesses últimos seis, sete anos, que o fundo esteve uma bela duma merda aqui em Ipanema, a galera que seria naturalmente surfista, por falta de opção e de vontade, preferiu seguir a onda dos lutadores.
- As meninas gostam...se sentem mais seguras, sei lá?! disse o magrelo cheio de recalque de ser magrelo. Menina nenhuma se sentiria segura do lado do magriça, a não ser que ele tivessa berrado-e ele sabia disso.
O gordinho se ajeitou na cadeira, respirou fundo como quem vai fazer uma bruta duma revelação e solta: - Um bando de bundão! todo dia esses malandros tão aí malhando de sungão, abdomen dividido e o caralho, nadando do Leblon ao Arpoador, mas é só o mar subir um pouco que os caras arrumam aquelas proteções pro joelho e ficam pianinho na areia.
- Eu li que nos próximos anos vai voltar a dar onda direto aqui na Zona-sul, é a tal da El Niña .
- Esse ano tá dando onda direto... já viu o fundo que tem na Teixeira?
- Aquilo é lugar de viado!
- Mas tem altas ondas em cima daqueles destroços de emissário .
- Tem mesmo.
- Tu viu aquele Guilherme Gross caindo outro dia na Joana Angélica pegando altos tubos?
Os Quatro balançaram a cabeça como quem dissesse, “vi sim.” .
Já estavam na vigésima, ou vigésima primeira, quando passou a loira que eles esperavam religiosamente naquele mesmo horário. Os copos ficaram dependurados nas mãos como que fossem entornar, a boca abriu levemente, só faltava escorrer a baba, os olhos pareciam ter olhado para medusa do Ulisses. Todo mundo vidrado no rebolado da musa do fim de tarde.
- Tremendo burrão... versou o gordinho.
- Isso é que é mulher. Sonhava o rabuja.
- Trabalha na Centaurus. Pilhou o mais novo.
- Mentira!!! Mentira deslavada! Indignaram-se os outros tres, já fazendo as contas pra ver se sobrava algum no mês que vem.
Quando virou pra pedir a vigésima quinta, o magrelo viu uma série de ondas se aproximar, marchando certinhas, alinhadas, até estourarem, quadradas, na beirinha, bem perto de uma criança que brincava na areia com a babá.
- Mais uma Ceará!
- Um brinde a Ipanema!
Dessa vez a única coisa que eles ergueram foram as esperanças.
- Ipanema é o lugar.
(Texto publicado na revista Vizoo, no longínquo ano de 1998)

O Homem com asas (clica aqui para saber mais)

Me permitam dividir essa entrevista 'roubada' candidamente de outro saite.
Um sujeito que vive de águas pode identificar-se com uma passagem ou outra...
Aprecie sem moderação.

"O homem precisa se deixar cair do ponto insustentável onde se instalou para ter o direito de adquirir asas."
Será durante a sua Queda que irá descobrir sua Leveza possível. Assim agarrado em seu próprio tronco, pendurado de si mesmo como se mantém, auto-suficiente fruta que não dá frutos, como poderá cumprir a sua missão de semear-se, de semear a coisa humana na Terra e ser a chuva inversa dos Céus?

ESTE É UM DOS TEMAS QUE VICENTE FRANZ CECIM ABORDA NA ENTREVISTA ABAIXO:



Vicente Franz Cecim: o alquimista luminoso do silêncio.

Por Fabrício Carpinejar

O paraense Vicente Franz Cecim, 55 anos, é um xamã da narrativa brasileira. Não quer a salvação pessoal. Cura a linguagem, misturando poesia, ensaio, prosa e anotações de viagem. Criou Andara, uma semente verbal que virou árvore falante, depois floresta e hoje é uma cidade pensativa de muitos afluentes e rios caudalosos, transfiguração da Amazônia, região natal do escritor. Completando 23 anos de voz, desde o lançamento de Asa e Serpente, Cecim já recebeu o Grande Prêmio de Crítica do APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte), em 1988, e a Menção Especial no Prêmio Literário Internacional Plural, no México, em 1981.
Pertence a uma genealogia de poucos e raros, como Guimarães Rosa. Sua intenção é mostrar o que ele mesmo não sabe, o conhecimento de ir se desconhecendo. Com aval de críticos como Benedito Nunes e Leo Gilson Ribeiro, suas obras estão reunidas no Brasil em dois volumes da Iluminuras, Viagem a Andara (1988) e Silencioso como Paraíso (1995). Em Portugal, a editora Íman lançou Ó Serdespanto, acolhido por Eduardo Prado Coelho como "revelação excepcional" e eleito um dos melhores de 2001 pelo jornal O Público, de Lisboa. O diferencial do ficcionista é o derramamento do canto.

A literatura é fantasma; a obra, invisível. Não existe fim, nem início, serpente sonâmbula que morde sua cauda. O autor recusa a prepotência e conversa nos ouvidos do leitor, pedindo conselhos e partilhando a perplexidade dos mistérios. Em Andara, filósofos e poetas tem paridade com moscas e serpentes. Anjos, mulheres e aves exercitam a sabedoria da queda.
Tudo é possível porque estamos no território do Nada. É a leitura do espanto e da estranheza. Em entrevista exclusiva ao Rascunho, Vicente Cecim lembra de seu filho assassinado, motivo que o fez adotar o Franz no nome para ser dois meditando num só, e diferencia a vertente oral (correnteza) da escrita (pedra). Não se escandalize com o tom da conversa. Nascido "da suspeita das montanhas", ele ainda vive no Antigo Testamento. [F. C.]

FC - Como define Vicente Franz Cecim? Fora e dentro?

VFC - Um serdespanto, mas isso todos nós somos, para isso basta ter nascido. E isso: Isso: que somos seres de espanto, é tudo o que nos é dado saber. Agora, cada um é um serdespanto à sua maneira: uns, mais ser no serzinho humano e menos no Ser de Tudo, outros mais sendo no Ser de Tudo e só um serzinho de nada em si mesmo. É uma questão de despertar o pequeno s para o grande S ou não.
Mas haverá mesmo essa diferença?
Provavelmente, não: somos sempre o grande S contido, Oculto, no pequeno s
que somos.
Talvez o que sou, não fora & dentro, mas no foradentro, já que essa divisão é pura aparência, possa ser dito por duas experiências que te conto brevemente. Dizem que antigamente havia homens que viviam cantando, só queriam saber de cantar, então os deuses os transformaram em cigarras: essas cigarras que hoje nos ciciam nos crepúsculos sobretudo, ainda seriam eles nos sendo em Cantos em coro junto com os cantos das folhas secas. Tu já ouviste folhas secas cantando no vento? Essa é a primeira experiência que me revelou estranhamente o que talvez sou: lá pelos 3, 4, 5 anos, morava num casarão antigo em Belém com muitos, muitos tios, tias, primos e os meus pais e minha avó, mas fugia do tumulto feliz da grande família para ficar sozinho na rua sempre deserta ao lado onde passava o muro imenso e compacto de um cemitério já então só habitado pelos mortos, o Cemitério da Soledade, onde ninguém mais era enterrado fazia anos. Era sempre no crepúsculo isso, e enquanto a luz ia se esvaziando na Terra que adormecia, as estrelas se esboçando no céu, e a lua branca, a que aparece para nos alucinar de dia, de olhos abertos, ia cedendo seu lugar à lua amarela, que aparece nas noites para nos alucinar de olhos fechados, e o Silêncio ia se instalando em tudo com sua presença sagrada de ausência dos sons: pois pense nos anos 50, um tempo lento e vazio das agitações modernas numa cidadezinha lenta como Santa Maria de Belém do Grão Pará: então, nesses crepúsculos melancólicos, como eu ia dizendo, as cigarras começavam a me chamar das gigantescas mangueiras enfileiradas ao longo do longo muro da Soledade: Ce cim Ce cim Ce cim. Foi a primeira vez, que me lembro, que pressenti o que eu fosse, o que eu era.
A segunda vez, já um jovem, na Ilha de Mosqueiro, próxima a Belém, lugar de férias de toda a cidade no verão, uma manhã mal despertado quando lavava os olhos na janela que dava para o quintal e a água caía das minhas mãos e dos meus olhos, se deu outra Revelação: vi, lá embaixo, no terreno alagado do quintal da pequena casa de madeira da minha mãe Yara, a Felicidade, a Alegria de uma florzinha insignificante que se banhava nas águas dos meus olhos recém-despertos para a vida visível. Por aquele breve ou infinito tempo sem tempo, não houve homem & flor, todos os eus do Universo se desfizeram e só ouve o Nós, o Um, o Homem em Flor. E essa: Essa: alegria daquela florzinha me disse tudo o que eu precisava saber para o resto da minha vida sobre a Alegria natural que move e nutre, também com suas dores, pois esse é o sentido didático de existirem flores com espinhos - embora às vezes eu me pergunte se o que existe mesmo não so espinhos com flores - toda a vida em si, dos insetos às galáxias e mais, mais além das Galáxias e mais aquém dos Insetos.
Veja, nessas duas experiências, a Progressão aproximativa: como esses Issos, pois são sabemos que nomes lhes dar, vão se chegando para nós.
Mas com rigorosas exigências, que também desconhecemos.
Primeiro, sob a forma das cigarras: sussurrando, mas se sob a condição da Penumbra.
Depois, sob a forma daquela flor: já Cintilando, pois aquilo cintilou em mim para sempre, mas sob a condição inapelável da mudez, do Silêncio.
Uma entrega mais plena sendo dada: Luz & Silêncio, então, como um passo que apaga o anterior, a outra entrega: Penumbra & Voz, também fosse ficando para trás.
Seria essa a origem mais remota de Andara, isso assim feito de livros obscuros ainda escritos que vão cedendo lugar a um não-livro sem nem sombra das palavras no papel que se quisesse só presença-ausência?
Bem, foi assim como contei.
E houve o pássaro enorme que desceu do céu sobre mim numa manhã chuvosa de Belém na minha juventude e mergulhou em mim profundamente, em meu peito, onde ainda está - mas é melhor não contar. Onde iríamos parar?
Desde então fui entendendo que um homem não sabe o que é, só
sabe de si essas Revelações que vai tendo ao longo da sua vida.
No meu caso, é mais complexo. Sim: porque desde que incluí em mim, ou me incluí Nele, meu filho Franz assassinado aos 19 anos e passei a me chamar Vicente Franz Cecim, passei, passamos, a ser dois os que escrevem os livros de Andara, dois os que vivem, em Um, a vida: Ele na vida invisível lá, eu na vida visível aqui.
O Pai & e o Filho, o Vivo & o Morto.
Ó Serdespanto. Mas eu usei as palavras erradas: eu quis dizer:

- O Pai aqui, ainda o Florescido & o Filho lá, já o Fenecido. Florescer, fenecer, entendo mais essas palavras a partir da natureza transeunte. Não entendo muito bem essas palavras, Nascer, Morrer, acho que elas têm certezas demais sobre coisas que não sabemos.
Foi dessas formas que fui me sendo, me tornando, o ser de espanto que hoje sou aos 55 anos. Sempre encarei esses acontecimentos com
muita naturalidade.

FC - O Livro Invisível é uma forma do autor se ausentar e deixar que unicamente a vida escreva, sem mediação?

VFC - É sempre a vida que nos escreve, nós não escrevemos nada, é o Nada que nos escreve escrevendo a vida, as paisagens, os homens, as chuvas, o vento, as vozes das coisas, seus cantos também, através de nós: somos o Lápis que Escreve o Livro que escrevemos vivendo. Os livros escritos são apenas cópias mal feitas desse Livro, e nossos lápis têm pontas rombudas. Mas um dia escreveremos como passarinho canta: de repente canta, e canta porque canta, sem saber por que. Na verdade, não canta: é ela: Ela: quem através dele canta, a Vida real oculta em nós, em tudo.
Mas lá em cima já falei errado de novo, preciso corrigir isso: eu não quis dizer Nada, essa palavra eu deixo à deriva no Ocidente, eu quis Vazio.
Eu quis dizer: - O Vazio que transborda. É ele que nos escreve escrevendo a vida.
Eu fui sabendo disso à medida então que ia escrevendo os livros visíveis de Andara, que são os livros que escrevo, os volumes individuais da Obra, e à medida que Viagem a Andara, o livro invisível que não escrevo, Ele é um não-livro, literatura fantasma, ia se formando: ia nutrindo esses livros para que eles existissem e deles ia se desnutrindo para existir em sua não existência.
Andara me escreve, por isso escrevo Andara, que é a Amazônia
transfigurada através de Mim. Se eu fizesse literatura apenas - o que não serve para nada, ou para muito pouco - e não deixasse a Literatura de lado para me dedicar, dedicar toda a minha vida, a praticar essa Alquimia de me tornar cada vez mais um ser de Escritura e cada vez menos um homem escritor, Andara não existiria. Andara, sabe o que é Andara: é um Serdespanto geográfico. Já a Amazônia é - poderia dizer só, para deixar bem claro - uma geografia espantosa. Mas é a Amazônia, a Natureza Sagrada, que torna possível essa impossível Andara. Tu vês: novamente se repete a parceria do Pai & do Filho, do Florescido & do Fenecido. Nesse caso, é a parceria do Real que nos Sonha com os nossos Sonhos do Real.

FC - Conversa continuamente com o leitor. Questiona, dá licença, compreende. É um recurso para extirpar a solenidade e a arrogância do escritor? A sensação é que testemunha e lê a obra, não a escreve.

VFC - Desde jovem fascinado pelos livros, lá pelos meus 16 anos, me irritava muito uma coisa na Literatura: sua prepotência. A prepotência do Autor, a submissão do Leitor.
Vivia dividido entre o fascínio e a irritação.
Hoje entendo assim o que se passa: isso acontece quando no Autor ainda predomina, rígido, o homo faber & o homo sapiens vindo, não abre de par em par as portas como seria de se esperar, mas ele próprio um tanto prisioneiro de sua chave de saber e cheio de auto-suficiência, muitas vezes estraga tudo, encerrando o Leitor num círculo fechado em que determina todos os movimentos permitidos.
Faltava o terceiro homem, que raramente vem se juntar aos outros dois na longa História da Literatura, mas que até às vezes - tão transbordante é o Vazio que através de nos transborda - de repente emerge do próprio Autor artesão, num momento em que ele martela em devaneio o ferro do seu texto.
Quem era o ausente? O homo ludens.
Foi ele que viu em Homero os dedos cor de rosa da Aurora, não foi?
O homo faber viu a Aurora e não teve tempo para se comover com isso, o homo sapiens viu o sol reaparecendo após dar a volta à Terra e se apressou a registrar seus movimentos.
Isso não basta para que as vértebras infantis cantem seus cantos em arte.
Pois então. Eu ia lendo os livros, e pensava: a vida: a Vida: é que é importante viver. Tantos segredos velados a serem quem sabe desvelados. Me lembrava da Alegria da florzinha se banhando na água dos meus olhos, de outras coisas que me aconteceram depois. E ia entendendo que a Literatura freqüentemente mais velava do que desvelava a vida. E me sussurrava, só pra mim, escrevendo sempre, sempre, no meu canto, quieto: só escrevo um livro quando tiver conseguido eliminar toda separação entre o livro e a vida, entre a vida escrita e a vida vivida, entre a minha e eu que escreverei, e sobretudo entre o leitor e eu. E chamava, como depois passei a chamar o pássaro Curau, eu mesmo não, mas o personagem Jacinto de Os jardins e a noite: - Vem, homo ludens, vem levar os homens para os teus jardins de textos. E foi assim, adiando acrescentar infelicidade à infelicidade de uma literatura feita por homens confusos e leitores infelizes, que só escrevi - tentando escapar a essa Limitação - e então publiquei, o primeiro livro de Andara, A asa e a serpente, em 1979, já aos 33, aquele idade em que se vai para a Cruz. Eu não queria ir para a Cruz,
queria ir para baixo da Figueira.
Foi conversando com os homens escondidos dentro dos autores dos livros, conversando, repare nisso, menos que lendo o que eles escreviam, que eu fui me tornando naturalmente um homem que de dentro dos meus livros converso com os leitores que estão fora do livro.
Aí, eu puxo para dentro, como entrava nos livros que lia, e temos estranhas e íntimas conversas à sombra da Página em Branco, que vai se cobrindo, como as folhas secas das mangueiras das cigarras cantantes, de palavras. Dessa conversa participa o Universo inteiro, dela gostaria de conseguir um dia que toda arrogância fosse banida: no Livro Invisível de Andara um inseto tem tanto direito quanto um homem de manifestar o seu espanto por existir. O autor freqüentemente é menos que os personagens. É mesmo mais como tu dizes: Autor, já quase só mera testemunha da vida se dando como vida escrita.

FC - Imagina um desfecho para a mítica Andara?

VFC - Os livros de Andara sempre terminam, devessem terminar com a frase: A viagem a Andara não tem fim. Admitir que os livros escritos de Andara pudessem ter um fim, isso seria como admitir que a vida visível pudesse ter um fim.
Não peço que ninguém me acompanhe nisso que agora vou dizer, se não foi chamado pelas cigarras, se não teve a experiência do Homem em flor, se não recebeu e tem guardado um pássaro dentro do peito.
Para ter um fim, uma coisa precisa existir. E os livros visíveis de Andara existem, a vida visível existe? A vida, a visível, escrita ou vivida, é da natureza das miragens. É isso que oscila entre o Florescer e o Fenecer. Ser de empréstimo, transeunte. Seu encanto é sua natureza de passagem. Suas palavras favoritas são Sonho, Efêmero, Fugaz. Existe é o transbordamento do Vazio, o vazio no centro que faz toda a roda girar. Existe é Vida invisível, mas dessa: Dessa: como falar a propósito dela a palavra Fim? Quando os livros escritos de Andara tiverem deixado de existir um dia, a Viagem a Andara, o Livro Invisível que não é escrito continuará existindo em sua existência de não-livro.
Mas vê, repara: Andara não é mais só uma cidade, também com ela se deu o Gênesis dos caminhos vegetais ao longo desses anos todos de surgimento de Viagem a Andara, o livro invisível: Andara começou como uma Semente: era apenas um bairro esquecido à beira de um rio indolente da cidade de Santa Maria do Grão habitado pelos mortos de um cemitério esquecido e a floresta ia retornando sobre a Civilização, recobrindo tudo: depois Andara se tornou um Arbusto: foi quando ela, crescendo, se expandindo, se tornou a Amazônia inteira: depois, eis Andara Árvore, e dando seus frutos: foi quando sua expansão a levou a se tornar uma região-metáfora da vida inteira: agora, nos últimos livros escritos de Andara que vão nutrindo o não-livro invisível, eis Andara Floresta: ela pulsando lá, no bairro esquecido inicial, mas já vai indo desse pequeno bairro esquecido da cidade do Grão até às imensas distantes Galáxias.
Andara sempre quis e o que mais quer é ir do Visível ao Invisível.
E isso não é o caminho para um fim, que é sempre uma Queda, mas um percurso para a origem: a Origem de Tudo, o que é uma Ascensão.

FC - Fica entre a prosa e a poesia, ensaio e ficção. Ser inclassificável não o desagrada, condenando-o a permanecer num círculo restrito de iniciados e ainda longe do grande público? Não ter parâmetros ou antecedentes dificulta a difusão crítica?

VFC - Difusão interessa, mas pouco: interessa mais a infusão, aquela Alquimia, de que te falei no começo, em que tudo cesse suas vidas separadas e se funda no Uno: prosa, poesia, meditações, reflexões, texto em Escritura, insetos e homens, o Visível e o Invisível, o dito e o não dito, o Silêncio e a Voz, a página branca e a página escrita, o sonhado e o vivido. Andara quer a fusão total, quer a fissão que abra a Fenda por onde tudo se reencontre na Unidade Original.
Deixa eu acrescentar uma coisa: Andara tem parâmetros, sim: mas não estão
onde estão sendo buscados pelos leitores, pela crítica especializada em Literatura, não são parâmetros simplesmente literários: os parâmetros de
Andara só podem ser achados na própria Vida. Para ler Andara, não basta saber ler letrinhas no papel, e, aliás, nem mesmo é preciso ler Andara: mas é indispensável conseguir ler através do lido: aí se renovará a Alegria que me foi transmitida pela florzinha que bebeu a água dos meus olhos quando eu era criança. E então se lerá Andara. É essa Alegria que escreve Andara. Não eu, que sem ela provavelmente jamais escreveria nada.
É ela, como já disse, que através de mim inscreve o Vazio em Andara.
Mas não é tão preocupante assim que Andara esteja um tanto fora do Mercado de Livros. Na verdade, não está. Como poderia, se o Mercado de Livros, como os insetos e as estrelas, já está dentro de Andara?

FC - As vozes de Andara estão sempre em trânsito, nunca satisfeitas. A busca do homem consiste em fugir de sua identidade?

VFC - A busca aflita, sim. Essas são as Vozes da busca aflita.
E é assim que, na vida visível, as coisas são. Quase como disse Beckett: Como é. Mas eu penso que em Andara a busca do homem é exatamente o contrário: é fugir da sua não-identidade. Em Andara há uma frase-epígrafe: Atravessar o que nos nega, chegar ao Sim: e é assim que tu verás um S nestes dias cegos. Vê: Andara se faz perguntas, as perguntas que a Vida se faz. Ou que os homens imaginassem ela, a Vida, se fazendo. O que também é uma forma de perguntar: a Imaginação é a nossa maior boca de perguntas. Em Andara, se a pedra se pergunta: Um dia serei semente, e serei árvore, e darei frutos? Se o Vento se pergunta: que Pulmão me emite como voz sem palavras, por que às vezes cesso, e é como se nunca houvesse existido?
Se o Homem se pergunta: a minha sombra é mais real que eu?
Todas essas perguntas deixam de ser perguntas no momento em que são feitas e se tornam realidades de Andara. Andara, reconhecendo a ignorância humana, é Terra de Hipóteses.
Melhor assim do que a arrogância tola de um Saber que ainda não temos.
Mas vê que eu não sou o que se chama de um pessimista: eu disse: um Saber que ainda não temos.

FC - Sua obra é um elogio ao silêncio. Acredita que desaprendemos a residir na linguagem (não mais a habitando poeticamente)?

VFC - Esse é o equívoco: o Equívoco: nós não habitamos a Linguagem, ela é quem nos habita. Apesar de todos esses séculos de Literatura não teríamos aprendido nada? Ainda não entendemos o que significam as palavras: No princípio era o Verbo? O verbo está em nós, e não nós nele.

FC - Suas imagens são imagens-conceitos. Emprega maiúsculas ao
se referir à Morte, Compaixão e Sombra. Existe uma identificação ancestral com o vocabulário dos românticos e místicos?

VFC - Montanha, Pedra, Homem, Flor, Vento, Lágrimas, os Oceanos, as Sombras, a Compaixão, a Amizade, também o Ódio: em Andara todos são Seres, até a palavra Palavra. A Literatura será ancestral ou não será.
É a Literatura que dorme dentro do Leitor que deve ser despertada, de dentro para fora. Ei, acorda. É um mal-entendido imperdoável que se faça literatura de fora para dentro. Ainda a arrogância de que te falei antes, lembras.
Em Os animais da terra, segundo livro ainda de Andara, de 1980, Andara já se dizia onde queria chegar, pela voz de Eckhart: Ali onde os anjos supremos, a mosca e a alma são semelhantes.

FC - Bebe na fonte da filosofia e teologia, recorrendo de forma obsessiva às observações de Mestre Eckhart, Kant, Silesius, Plotino, Heráclito, entre outros. Com isso, valoriza a escritura como um processo de descoberta pessoal. A compreensão do ser implicaria na compreensão do mundo no ser. Lembrando de Novalis: "o Eu como caminho de acesso ao Universo".


VFC - Temos uma grande sede, humana, então recorremos às Fontes. Mas Silesius, Plotino, Heráclito e outros, alguns visivelmente, outros invisivelmente, estão em Andara pelo mesmo motivo, pela mesma Lei que move e promove o encontro: a União de tudo que existe, ou não existe, em Andara. Esse grande encontro de insetos e ventos falantes com a voz de Nagarjuna, por exemplo, que me ensinou a Originação Dependente - de tudo o que floresce e fenece, as coisas transeuntes, emanações sem existência própria em si - que é um dos invisíveis presentes em Andara, ou com a voz de Plotino, um dos já visíveis em Andara, que me ensinou que a vida visível ainda é emanação rarefeita da Vida Invisível nos subúrbios da Vida e por isso também participa do sagrado: tudo me confirmando que o natural é sobrenatural e que o sobrenatural é natural - esse grande encontro é a celebração do Encontro que no fundo todas as coisas almejam e, porque almejam, é o que lhes dá sentido: esse Almejar.
Novalis também disse: Somente a precariedade dos nossos sentidos não nos deixa perceber que vivemos num Universo feérico. Se um dia percebermos isso, terá enfim se dado o Encontro. Andara fosse esse Universo
feérico revelado, ao lado do Universo feérico irrevelado que não vemos.
Ainda não vemos. Mas um dia, como foi anunciado no livro de Andara que já
citei, Os jardins e a noite, naquele já distante ano de 1981, o Curau vai voltar para cegar os homens e libertá-los desses olhos que eles têm sob o sol para não ver nada e levá-los para os seus jardins. Se são pois essas as Luzes e essas as Sombras e indo nesses caminhos como vamos, como, então, sendo a criação de Andara uma Vertigem, uma queda livre para o alto que se dá assim, não haveria de nela se dar a aparição do Paracelso que nos disse que devemos ver a Luz que as próprias coisas emitem de si, porque a luz que vem de fora sobre elas nada revela, antes, as oculta de nós?

FC - Andara tem a mobilidade da tradição oral. É uma mesma história que muda quando repetida. São versões de um mesmo núcleo. Novos detalhes são acrescentados e outras lembranças agregadas. Cada novo livro trai a memória do anterior na medida que o reinventa? O que move o caminhante de Andara é o esquecimento? Andara sempre será um livro inacabado?

VFC - É preciso esquecer o que pensamos ser, para podermos lembrar o que de fato somos.
O sonho de uma sombra, como disse Píndaro?
Então sejamos. Só temos a chance de sermos o que somos, ou não
somos. Não existe um fora para onde fugirmos e onde nos abrigarmos disso.
Agarrados à pedra no leito do rio corrente, riverun, dizia Joyce, assim como nos mantém essa Civilização que é pura negação do Sagrado, da Natureza Sagrada das coisas, como poderemos nos deixar levar pela aparente corrente que vai até penetrarmos na verdadeira corrente, que é Aquela que vem ao nosso encontro?
Rimbaud convidava a navegarmos sem os nossos sirgadores.
Existe uma literatura Barco Ébrio e existe uma literatura Titanic.
A literatura oral é rio, mas a literatura escrita quer ser pedra.
De novo, a prepotência. Tudo muda, sem mudar. Assim como na vida,
Andara também se faz como mudanças contínuas onde nada muda, ainda nada mudou, porque Andara ainda é muito pesada, muito a Pedra, e pouco o Rio.
Onde achar a Leveza, a coisa aérea, que se ergue por si própria do texto - como da vida - ao mesmo tempo que as palavras depositam as suas raízes na superfície da página em branco, que as nossas ações recobrem as nossas ações?
Gostaria de responder a mim mesmo a isto com duas citações.
Uma, extraio do Manifesto Curau/Flagrados em delito contra a noite que escrevi em 83, e que me repito para não esquecer: - É preciso tocar o coração de Aquiles do real, ali onde ele é sensível e impaciente espera um acontecimento total que o transfigure.
A outra extraio de O livro por vir de Maurice Blanchot, quando falando do canto das sereias ele diz que esse canto é: - Tão semelhante ao dos homens que faz suspeitar da inumanidade de todo canto humano.
Aqueles homens-cigarras que eu ouvi na minha infância. Ah, foram eles que acabaram em mim tudo o que ainda restava de literatura humana, se se pode dizer assim.
É possível uma Voz mais bela.
Escrever Andara é para mim tentar fazer ouvir novamente esse Canto.
Mas, antes, é preciso erguer a Pedra.

FC - O real é aquilo que não podemos sonhar?

VFC - O real é aquilo que nos sonha.

FC - Há uma nostalgia da unidade, da totalidade. Hoje a literatura total é impossível? Como mesmo proclama em Ó Serdespanto, "já que estamos dentro do livro, ou do que restou dele". O que vai publicado, na verdade, são as sobras do texto?

VFC - Os livros escritos, visíveis, como na Alquimia, são a Resídua, a borra, o que fica no fundo.
Por isso a necessidade de deputar pelo Livro Invisível.

FC - Não vigora uma hierarquia entre os reinos. Verifica-se uma mistura entre as aves e os murmúrios da terra e do lodo, do alto e do baixo, do sublime e do profano, como que reconstituindo um caos originário.
Ao toque de paralelismos e versículos, sua matéria ficcional está mais próxima do Antigo Testamento do que do Novo?

VFC - O Antigo é o Novo. Só há o Antigo. O Novo é vaidade humana.
Já falamos antes, nos antecipando, da inexistência de uma hierarquia em Andara, não foi?
O Caos original não ficou para trás: ele é o próprio Presente.Ainda estamos agarrados na Pedra, lembra? Só temos o passado.
O Rio ainda não começou a correr para nós, porque tememos as altas ondas que nos salvarão da segurança da pedra de sermos.

FC - Como aprender a semelhança entre a pata e o gesto humano?

VFC - Esquecendo que há uma diferença entre a pata e o gesto humano.
Mas jamais faremos isso, enquanto a nossa ignorância, a Avydia de que falava Gautama Buda, continuar desprezando a pata como coisa que ficou para trás, como ainda manifestação temível do Caos original.

FC - Seus personagens estão em perpétua queda. Todos os treze livros de Andara (reunidos em três volumes) são marcados pela negação. O que impede a ascensão? Até quando "atravessaremos o que nos nega, para chegar ao sim"?

VFC - Talvez, para muitos, seja terrível ter que dizer isso: O homem precisa se deixar cair do ponto insustentável onde se instalou para ter o direito de adquirir asas. Será durante a sua Queda que irá descobrir sua Leveza possível. Assim agarrado em seu próprio tronco, pendurado de si mesmo como se mantém, auto-suficiente fruta que não dá frutos, como poderá cumprir a sua missão de semear-se, de semear a coisa humana na Terra e ser a chuva inversa dos Céus? Em Andara está tudo caindo e tudo subindo. Andara é esse se cruzar no meio do caminho entre a asa e a serpente, passando pelo homem agarrado em seu tronco e lançando sobre ele Clarões e Sombras para que finalmente veja:
a Terra lá no alto, o Céu embaixo de si.
Vê, tu sabes que eu gosto de falar com as palavras das imagens. As palavras são ressequimentos, belos ressequimentos, mas nas Imagens ainda há o viço.
Imagina: que estamos no centro da Terra, no coração do Coração
da Matéria: e então aí alguma coisa vibra imperceptivelmente: depois, mais
perceptivelmente, e vai se nascendo e é: uma semente: um caule: a luz do
Sol e desabrocha uma Flor: que se vive, e depois vai murchando, fenecendo:
uma parte se curvando, retornando à Terra, mas a outra: a Outra: o seu
perfume, se evolando e ascendendo aos céus: sempre ascendendo, passando
pelas aves que voam sob as nuvens e mais adiante já pelas Aves que voam por
sobre as nuvens, e diz-se disso: Anjos?: e sempre subindo o perfume da Flor indo em sentido inverso à flor coisa fenecível, então irremediavelmente fenecida, e já deixando as Aves mais altas para trás e agora passando pela luz das estrelas, tantas Galáxias a ultrapassar, eis: o perfume penetra, também irremediavelmente atraído, como a flor fenecida pela Terra, na Luz que deu luz às estrelas: que agora também ficando para trás: é a Pura Luz que chama, Chama onde mergulha e na qual se funde o perfume: o Perfume: indo cada vez mais fundo através dessa Luz até tocar a Semente Sem Luz, a Semente que nem Luz é ainda: diríamos: a Semente sem semente: agora estamos no Coração do coração sem coração das coisas: e aí, eis: então alguma coisa vibra imperceptivelmente ainda não coisa: depois, mais perceptivelmente, e vai se nascendo e é uma semente: a Semente que está, sempre esteve nascendo no centro da Terra, no coração do Coração da Matéria.
Ponto final. Eu te pergunto: saímos do mesmo lugar? Não. Esta não foi uma viagem entre dois pontos, foi uma viagem entre um ponto e ele mesmo. Não há dois pontos e um espaço entre eles a percorrer. Só a viagem: a Viagem. Só ela acontece. Só a ela é dado acontecer.
Andara é essa viagem, entre dois pontos que não existem.
Andara é o Lugar de Nenhum Lugar, por isso é o Lugar de Todos os Lugares.
Ficou mais claro, agora?


Fabrício Carpinejar é jornalista e poeta, autor de As Solas do Sol, Um
Terno de Pássaros ao Sul e Terceira Sede. Entrevista publicada
originalmente no jornal Rascunho (Curitiba, março de 2002), editor Rogério Pereira.
Contato: andara@nautilus.com.br"

terça-feira, março 16, 2004

Som de surfar na grande rede (clica aqui)

Era verão de 1993, a estrada que corta a Califórnia levava tanto sonho, tanta fantasia, que volta e meia eu me perdia.
E justamente quando me perdia é que achava as lojinhas de CD usados e passava umas boas horas futucando, dedilhando...CD por CD, fita por fita.
Não podia ver o precinho US$ 0,99 que levava - só de raiva.
A turma que trabalhava no caixa já me conhecia, eu era o psicopata que deixava horas dentro da loja e em troca arrematava todo lixo que ficava empilhado nos fundos de cada estabelecimento.
"Quanto é ?"
"53 Dólares, senhor."
"Tá aqui..."
"Algum para presente ?"
"Não, não..."
"Todos os 18 ??"
"Sim..."
"Voce deve gostar um bocado de música."
"....!?!..."
"De onde voce é ?"
"Rio de Janeiro, Brasil, conhece ?"
"Já ouvi falar...lá ainda não tem CDs ?"
"Tem, mas são uma baba...!"
De volta pro carango, sintonizo na KCRW e ouço o melhor programa de rádio desde que acabou a Fluminense, Morning Becomes Ecletic, uma entrevista maravilhosa com um dos camaradas que mais admirava, e admiro, no meu limitado universo musical: Karl Wallinger.
Ex- Waterboys, banda que fez a cabeça dos oitentinhas com o hit "The whole of the moon", Karl largou tudo e criou o World Party, uma espécie de Tom Petty açucarado com Beach Boys, se me permitem a brincadeira.
As letras de Karl no World Party valem uma pesquisa na rede e, quanto à entrevista dele na KCRW, foi inesquecível, principalmente a participação dos ouvintes.
Experimentem os arquivos da KCRW.
É uma delícia.

De dentro pra fora (clica aqui)

No filme "In wich we serve"(1942), de David Lean, a esposa do capitão de um navio de guerra prestes a zarpar para a Segunda grande guerra, oferece um brinde à uma mocinha que recem noivou-se com um dos tripulantes.
"- Este é para o meu maior rival, o navio. Que fique bem claro para a jovem que está noiva que ela casa-se com um homem que sempre terá no seu navio a sua prioridade. Na frente da família, da esposa, dos amigos, sempre estará o navio. Eu faço um brinde ao meu maior rival: o Navio"
A tradução é livre e mal feita, entretanto, e inevitável, a comparação do navio de 1942 e a prancha de hoje é alarmante.
A relação de determinados surfistas com o surfe, representado pela prancha algumas poucas vezes, metafóricamente, vai alem da compreensão humana média: apenas um surfista com tamanho apego enxergaria algum sentido naquela loucura toda - como bem mostrava a campanha da Billabong no final dos anos 80, "Only a surfer knows the feeling".
Dito isso, exemplificada a verdadeira obsessão que faz de uma minoria privilegiada os porta vozes do que podemos chamar de cultura-surfe, lhes apresento uma turma chamada "The Val Dusty Experiment", Jon Frank, Andrew Kidman e Mark Sutherland.
Juntos, realizaram o projeto que chamou-se "Litmus", talvez, e sempre especulo o talvez pois trata-se, meramente, de uma opinião, sim!, trata-se da maior obra prima da era dos vídeos.
Importante notar que existe o filme de surfe, como tudo começou e desenvolveu-se desde os anos 40, com maior notoriedade nos 60, sucumbindo nos 70, para finalmente morrer nos 80 e renascer, agora sim, como vídeos nos anos 90.
Se o parágrafo acima não refletir uma verdade granítica, aproxima-se bastante, porém...
Litmus é um divisor de águas, Moisés atravessando o Mar Vermelho, o surfe apresentado como atividade adulta, de grande impacto estético, intelectual sem ser metido a besta, criativa nas formas de interpretar uma onda, nem religião nem arte, surfe e só.

Wayne Lynch

O jornalista menor Tim Baker demonstrou toda sua falta de lucidez quando sentenciou numa crítica feita ao vídeo na extinta e maravilhosa revista Australiana "Deep", na ocasião do lançamento em 1997, argumentando que LITMUS, se fosse filmado em película seria uma obra-prima.
Ora, LITMUS é um clássico exatamente por isso, meus caros.
O fato dos camaradas terem a pachorra de gravarem tudo em pequeninas câmeras digitais, com seus recursos e limitações, só atenua a linhagem extraordinária da obra.
Como no segmento em que Wayne Lynch divide seus delírios, sua fogueira, seu Didgeridoo e sua 'Tee pee', uma espécie de cabana indígena, com a câmera, voce assistindo tudo borrado pela velocidade baixa da gravação, o barulho do estalar da lenha...
"- não vejo motivos para continuarmos adolescentes para sempre, o mercado é tão orientado para os jovens. Surfe não é mais jovem. Surfe amadureceu, surfistas amadureceram..."
Me dá arrepios só de escrever essas palavras do velho bruxo, então com 45 anos e surfando feito um...adolescente ? ou adulto ?
Onde termina um e começa o outro ?
Assista Litmus, leia Kidman, ouça Val Dusty, eles tem algumas respostas.
Mas, quem precisa de respostas no final das contas ?

O Ciclope

No diário de filmagem, consta que Derek Hynd surfou em Jeffrey's Bay, num mesmo dia, com a 5'8'' Skip Frye, 22'' de meio, twin keeled fish, pela manhã, 8'6", Tom Parrish single fin, 3'' de espessura, circa late 70's, pela tarde e, finalmente, 9'9" Brewer Triquilha, 4'' de borda, no finalzinho do dia.
Chamamos a isso ecletismo. Ou talvez mais adequado, experimetalismo.
Depois de ter feito a cabeça de Curren durante as filmagens de um dos vídeos em série "Search" para tentar a 5'8'' e mudar o jeito de meio mundo surfar nos anos que seguiam, Hynd mostra em Litmus a sutileza da evolução das pranchas, e com pequenas homenagens à própria evolução, do surfe moderno como conhecemos hoje.
Suas opiniões são impublicáveis e essenciais.

Irlanda

Não há cores berrantes no filme. Se houvesse a pecha, quem sabe seria um vídeo-noir, com tons acizentados, dias nublados e musica ambiente de sensibilidade fora do comum. Como na parte onde visitam a Irlanda com Joel Fitzgerald e mostram, pela primeira vez, um surfe assustador, corajosamente filmado de dentro d'água - em águas que conhecemos gélidas.
Comparo esse trecho com a famosa cena da descoberta de Uluatu no filme "Morning of the earth".
As imagens são aterradoras. Tubos enormes em ondas cracomidas, deformadas pelo peso e violência, Joel escavando as cavernas com ímpeto de conquistador e uma música terna, contrastando com tudo isso.
Joel fala de seu pai e de seus ídolos: Occy e Curren.

Occy e Curren

Não pensem que não há surfe de desempenhos brilhantes e modernos tambem.
Um pequeno trecho com a irreverência de Occy surfando em Winkipop, ao som dos Val Dusty, é digno de culto.
E Curren.
A epopéia de Litmus, passa pela Austrália de Lynch, J. Bay interpretada por Hynd, escavações de Joel na Irlanda, Espancamento do ogro Occy e passa pela psicodelia de Curren surfando linhas limpas perto de casa, na época, na Califórnication.
A trilha nesse momento é de distorções, ruídos e microfonia, gravado por Kidman numa ocasião na sua querida Victória natal, sempre presente no vídeo, de uma 'Jam session' de Curren tocando no seu (de Kidman) quintal.
Mais uma vez as imagens aquáticas são magníficas e o surfe é apresentado com lentidão para a perfeita percepção dos movimentos quase místicos de Curren.

Sonhos

Na velha tradição dos filmes de surfe, uma animação chamada "Dreams" em nada anima o vídeo, pelo contrário, segundo Kidman, uma animação anti-heroína que alerta pros males dos assuntos que outros veículos preferem evitar.
A marca deixada pelo manifesto é de que não existem fronteiras para o formato de vídeos de surfe, tudo é possível, como diria Larry Bertleman.
A partir daí, desse Litmus, tornou-se viável um marketing mais 'solto' para as grandes marcas, principalmente para uma turma que surgiu na esteira da proposta sugerida dos Val Dusty: os Moonshine conspiracy.
Chris Malloy e jack Johnson devem acender uma vela por dia, agradecendo seus inúmeros prêmios, para Litmus, pedra fundamental do surfe olhado de dentro pra fora.