segunda-feira, março 22, 2004

Canções para Setembro

[Escrevesse em inglês, Gonçalo seria reconhecido como surfista que melhor traduz essa nossa melancólica mania de reconhecimento.
Gonçalo Cadilhe partiu para uma volta ao mundo limitada por terra e pelo Mar, de onde escreve colunas tão humanas quanto fantásticas para a revista Surf Portugal, a melhor publicação para quem tem algum apreço pelo idioma, e para o jornal Expresso, em sua revista semanal.
O texto que tenho o prazer de dividir com voces foi escrito antes da jornada, quando a coluna ainda chamava-se "Pulsar das marés" - agora a maré pulsa em "sete mares".]



Canções para Setembro

Ela era a menina que vem e que passa no caminho para o mar. Era a namorada do Verão, dos dias de sol sem vento, das praias sem barracas escondidas nas falésias. Havia sempre um perfume de pele jovem e bronzeada no contacto com o seu corpo, um sabor a sal nos lábios quando beijavam, um reflexo nos olhos dos reflexos de luz no mar.
As ondas eram poucas, ondas de Verão, a prancha tinha menos uso dentro de água do que fora, espetada na areia. A prancha era quase um adereço, hoje diz-se um “optional”, servia essencialmente para dar consistência cromática a esse amor de meninos quase adultos. Os sorrisos, os corpos perfeitos da adolescência, os calções de banho coloridos, a leveza dos passos no caminho do mar e a prancha pintada com tintas primárias eram peças colocadas numa disposição estática e derradeira como a moral dos mosaicos bizantinos. Só que a resina, a fibra e a cera ficavam a apodrecer ao calor, mas quem se importava?
Ela era a menina dos cabelos queimados pelo sol e das t-shirts gravadas com figurinhas de ondas enormes, mas a temporada não era de ondas grandes, o mar não exigia dedicação nem coragem, só presunção e aparência. Faltavam meses para que as coisas se tornassem sérias, e quando chegasse esse momento o namoro iria perder a inocência. Não tinha ainda havido tempo para discussões, amuos, desilusões, enganos, mentiras. O Verão é demasiado curto para dar tempo a que outras pulsações subam à superfície, o amor de Verão é como navegar em águas doces e suaves ao luar.
Ela sentava-se sempre na linha da maré à espera, vivia a praia com a mesma intensidade com que vivia o namoro do Verão. Dizia que nunca poderia habitar longe do oceano. Sentada na linha da maré a olhar o mar, parecia aos que passavam na estrada uma sereia frágil e dependente.
Ela estava na idade em que as mulheres são perfeitas, em que os defeitos são apenas características, e qualquer característica passa por virtude. Ele sabia, ou talvez só pressentisse, porque eram ambos demasiados novos para saber, que ela ia deixar uma marca, que as semanas iriam depois pesar como se tivessem sido anos. Eles não sabiam, mas o Verão vale tanto numa paixão como todas as outras estações juntas.
Vieram depois as ondas de Setembro, e o frio das manhãs estalou a transparência cristalina do amor de Verão. Ele aparecia menos, chegava atrasado, estava com a mente algures, a paciência faltava. A intensidade das horas no mar no Outono era muito superior à intensidade das horas na praia no Verão. A idade não permitia atitudes comedidas, ele não soube direccionar os impulsos: toda a fogueira que arde na alma agora ficava reservada para o surf, não guardou nenhum bocadinho de fogo, nenhuma labareda, para o amor. Foi assim naquele Outono, é assim naquela idade. Demorava um ano para o próximo Verão, e quem sabe quantos anos ainda até a cabeça assentar...

***

Encontrei-a por acaso há dias. Eram as duas da tarde dum dia de chuva de Agosto. A menina que caminhava num balanço ainda hesitante para o mar é hoje uma mulher com os pés bem assentes na terra firme. Vive no Alentejo, entre searas e horizontes de luz. Tem dois filhos e um marido-amante no centro da sua vida. É feliz. Ainda canta, com a guitarra, a dicção impecável e a intensidade intacta, as canções de Jacques Brel e algumas bossas novas. Canta no alpendre, ao entardecer, quando o calor acalma, o marido regressa e a brisa volta a ondular as ervas das colinas do Alentejo. “Olhar para as colinas mata as saudades do mar”, disse-me com uma pontinha de mágoa nos olhos, com aquela tristeza de quem se apercebe à queima-roupa dos anos que já passaram. Eu retribuí a mágoa do olhar e fiquei em silêncio a pensar em tudo o que podia dizer, a pensar nas vidas que não tive, a pensar que aqueles filhos podiam ser meus, aquele marido-amante podia ser eu, aquelas colinas a ondular com o vento podiam ser tudo o que me restava de mar.
Fica sempre tanto por dizer. Tu tens a tua família, a tua música, a tua quinta, eu ainda tenho as ondas de Setembro. E as paisagens do mundo à minha espera, para ir atravessando vezes sem conta, tentando não olhar para trás.
Gonçalo Cadilhe

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