[Texto inédito, escrito em Janeiro de 2012]
Ei nós, que viemos
De outras terras, de outro mar
Temos pólvora, chumbo e bala
Nós queremos é guerrear
De outras terras, de outro mar
Temos pólvora, chumbo e bala
Nós queremos é guerrear
Peixinhos do mar - Milton Nascimento
Somos guerreiros mas não somos de guerra. Se tem uma ideia que nunca passou pela nossa cabeça foi a de guerrear.
Essa tempestade começou com garoa fininha, gotejando ainda nos anos 70 com Pepe e Daniel Friedman arrastando os dois primeiros campeonatos internacionais aqui do Salvelindo, ainda na pre histórica era das monoquilhas,1976/77.
Ainda em 76, 18 surfistas foram convidados para competir no Pipeline Masters, penultima etapa do circuito do IPS (atual ASP), Pepe foi um dos escolhidos e chegou até a final, causando grande celeuma pela importância do evento.
Pepe terminou o ano em 18º lugar no ranking, apesar de ter competido apenas em 4 (1 no Rio e 3 no Havai) eventos e pontuando só em dois - ficou na frente do Wayne Rabbit Bartholomeu e Terry Fitzgerald, ambos com 5 eventos.
Nos anos 70, tínhamos uma revista de surfe só, a TV mostrava surfe pontualmente uma vez por ano e nossos heróis tinham nomes esquisitos como Rico, Bocão, Rato, Mudinho e Lipe.
Cauli foi provavelmente o primeiro a ter o desejo real de fazer parte do insipiente circuito mundial de surfe profissional, justo pelo fato de ser o mais feroz e dominante competidor do Brasil no final dos anos 70.
Como bem apontou Fred D’orey num dos seus textos, Cauli passou a seguir o modelo australiano de surfistas, mais modernos e competitivos, enquanto o resto da turma preferia o modelo havaiano, mais romântico, doidão e antiquado.
Atrás da seriedade e compromisso que Cauli tinha com as competições, vieram Valdir Vargas, o próprio Fred, Roberto Valerio, Ismael Miranda, Paulo Tendas e Alexandre Salazar, mais conhecido como Picuruta.
Essa geração começou a ser percebida de forma diferente das anteriores. A chuva engrossava.
Ainda não havia no Brasil um surfista que pudesse, ou quisesse, participar integralmente do circuito mundial, os custos eram caríssimos e os resultados escassos demais para garantir o proximo campeonato ou prato de comida.
Na realidade, até o início dos anos 80 era muito mais interessante sair pelo mundo atras de onda boa do que competindo.
O sujeito guardava dinheiro pra ir surfar com os amigos, fosse lá onde fosse.
Quem gostava de onda grande economizava pra passar no minimo 4 meses no Havaí, ou como Bocão fez em 73, passar logo um ano inteiro.
Melhores Brasileiros no ranking até 1988
1977 - 21º Daniel Friedman (2 eventos)
1978 - 32º Cauli Rodrigues (2 eventos)
1979 - 72º Daniel Friedman (1 evento)
1980 - 27º Ismael Miranda (2 eventos)
1981 - 23º Valdir Vargas (3 eventos)
1982 - 30º Roberto Valerio (2 eventos)
1983 - 48º Roberto Valerio (2 eventos)
1984 - 78º Fernando Bittencourt (2 eventos)
1985 - 70º Roberto Valerio (8 eventos)
1986 - 91º Renato Phebo (7 eventos)
1987 - 76º Pedro Muller (8 eventos)
1988 - 54º Fabio Gouveia (12 eventos)
Cauli enxergava mais longe e melhor que todos |
Fecha o tempo
Descontando o Waimea 5000, onde éramos capazes de aniquilar muitos dos favoritos com a condição certa e torcida a favor, foi na Africa do sul que começamos a chamar atenção. Primeiro com um quinto lugar do Roberto Valerio no Renault Pro de 1983.
Valerio bateu o grande ídolo local, Martin Potter, na casa dele, Durban.
[Potter ja começava a virar fregues, tinha perdido pro Fred em 1981 aqui no Rio e ainda nos daria o prazer imenso de perder pro Fabinho em 91 na França...]
Cauli conseguiu a proeza de varar a muro de preconceito na Australia em 1983 mas logo foi garfado quando chegou longe demais.
Cauli conseguiu a proeza de varar a muro de preconceito na Australia em 1983 mas logo foi garfado quando chegou longe demais.
Depois foi a vez do Picuruta assustar em 84/85 com uma serie de bons resultados na Africa que consistiam em apenas passar pela triagem e chegar até o homem.
Mas Picuruta não apenas passava baterias.
O surfe do santista tinha algo novo e pouco comum nos desajeitados surfistas brasileiros, Picuruta tinha power, postura e drive, em outras palavras, surfava veloz, forte e elegante.
Não bastava.
Aqui no Brasil era raro a divisão de categorias entre amadores e profissionais, campeonatos nacionais eram dois ou tres e o formato confuso.
Não havia ambiente para se formar surfistas competidores - ainda...
Em 1986 a Hang Loose realiza uma etapa do circuito mundial na Joaquina, que não desaponta e quebra classico por 3 dias.
Depois dum hiato que nos empurrou la pra segunda pagina do ranking, o mundo volta a olhar pro Brasil com curiosidade.
Tinguinha deixa todos impressionados e o tetra Mark Richards o aponta como grande promessa.
O ainda amador Sergio Noronha chega até as quartas de final e lava a alma da torcida que lota a praia.
Trazendo de volta os maiores surfistas do planeta de volta para nossas ondas, a Hang Loose inicia sem querer a maior revolução que o surfe profissional brasileiro teria na sua historia.
A simples convivência com Occy, Carrol, Gerlach, Archy e cia já fazia a rapaziada local evoluir em uma semana mais do que num ano inteiro. E essa turma queria isso mais do que qualquer coisa - evolução.
O Gato sempre foi referência dentro d'água |
Evolução = conquista
Com a estruturação do surfe nacional e o primeiro circuito brasileiro profissional em 1987, as primeira participações no mundial amador em 1984 e 1986 e a categoria amadora bem estabelecida, estávamos no caminho certo.
Um programa jovem na TV aberta, semanal!, unia e compartilhava as imagens bem antes de existir a palavra website. O Realce, dos surfistas Ricardo Bocão e Antonio Ricardo trazia as ultimas noticias do surfe numa velocidade alucinante, em audio e video, tornando a TV mais uma ferramenta importantíssima no árduo caminho até o tão sonhado circuito mundial.
Nessa altura, já temos quatro revistas, alguns jornais e dezenas de fanzines (os blogues da epoca).
Renato Phebo anuncia que conseguiu um patrocínio (British Airways) para competir em todo circuito, Pedro Muller, Marcelo Boscoli, Rodolfo Lima, Eraldo Gueiros, Carlos Burle, Dada Figueiredo, Pepe Cezar, Felipe Dantas, Taiu, Cezar Baltazar e mais uma meia dúzia de gatos pingados se apresentam para fazer volume.
Já não somos mais tipos exoticos ou meros mascates frequentando a festa exclusiva dos gringos, a maioria é bem educada, fala bem inglês, vem de familias abastadas e tem a prancha lotada com patrocinios.
Falta estourar.
E em 1988, Fabio Gouveia faz exatamente isso, não apenas ganhando o primeiro título mundial amador para o Brasil, mas fazendo um verdadeiro estrago na sua estreia no Tour.
Ele e Flavio Padaratz são o grande destaque da temporada australiana do final do ano.
Fabio ganha um prestigiado Pro Junior, faz a semi final do MBF em Bondi, ganhando do Tom Carrol pelo caminho, na semana seguinte ganha a triagem do XXXX no Gold Coast, em seguida faz as quartas do BHP em Newcastle enquanto Teco fica em segundo na triagem, perdendo para Richie Collins na final.
O tradicional jornal australiano Tracks publica um artigo chamado ‘Boys from Brazil’, escrito pelo fotografo Paul Sargeant.
Inspirado pela conquista do Fia, um moleque de 16 anos chega até as semis do Alternativa Pro no Rio. Na frente duma multidão apaixonada, Victor Ribas enfilera a gringaiada e nos enche de orgulho e esperança no futuro.
Já em 1989, Fabio e Teco acompanhados de Amaury ‘Piu’ Pereira, competem em mais de 20 eventos no mesmo ano.
Fia tuitando - Tuíiii! |
Parada numero 1
Abril de 1990, quarta parada do Tour, Tom Curren faz sua volta ao circuito e, desde as triagens, vence as tres primeiras.
Curren ainda não foi vencido por ninguem em 90 e vai enfrentar o paraibano Fabio Gouveia no Coca Cola Surf Classic em Narrabeen.
Fabinho ganha do Curren, ganha respeito e espera pela sua vez.
Julho de 1990, Teco chega até a semi final do maior evento do mundo, OP Pro em Huntington na California.
Teco ainda faria mais uma semi na França e uma final no Rio, mas seria Gouveia a trazer o titulo de volta do Brasil ao vencer o Hang Loose Pro no dia 28 de outubro.
Um surfista brasileiro não ganhava em casa (nem fora) desde 1977.
Foi um delírio completo e a deixa pra avisar:
Querida, chegamos!
Querida, chegamos!
Em 1991, Fabinho ganhou o Arena Surf Masters em Biarritz e Teco arrastou finalmente o Alternativa.
No ano seguinte, Gouveia terminou em quinto do mundo- ninguem sonhava com isso cinco anos antes.
Fia, Teco e Piu levaram junto no rastro, Peterson Rosa, Renan Rocha, Vitinho, Jojo, Tinga, Hemerson Marinho, Tadeu Pereira, Tatui e mais.
A invasão foi absoluta.
Vitinho vai um pouco mais adiante e encerra 1999 em terceiro lugar no ranking.
Neco Padaratz entra no tour quebrando tudo.
Já começavamos a falar sobre um possivel título mundial...
Todos já conhecem de cor as cores do fundo da prancha do Medina |
Corta! Ação!
20 anos depois dos fabulosos feitos de Fabio, Flavio e cia na ASP, um menino ainda adolescente chega ao tour na metade do ano e ganha, não um, mas dois eventos.
Gabriel Medina é da geração que viu Adriano de Souza arrombar as portas.
Viu Mineiro em 2006, no seu primeiro campeonato entre os top 44 (ainda eram 44) chegar até a semi final.
Viu Jadson fazer a mala do Slater na sua primeira final, no seu ano de estréia no WT.
A subida foi lenta, mas constante, recuamos algumas vezes para pegar embalo e subir mais.
A tempestade brasileira não é mais uma surpresa - faz parte do cotidiano.
Somos guerreiros mas não gostamos de guerra.
Gostamos é da batalha.
40 anos de historia do surf brasileiro em algumas linhas...excelente...
ResponderExcluirBoa Julin! Finalmente o surfe brasileiro amadureceu, falta muito pouco pra essa geração brasileira virar poster na parede da garotada da Austrália e América. Os gringos vão aprender a falar português.
ResponderExcluirBoas ondas :)
"A heaven, a gateway, a hope
ResponderExcluirJust like the feeling inside, it's no joke"
Escreve um livro Julio, seus textos são diferenciados sangue bom...
ResponderExcluirAve Julius...
ResponderExcluirExcelente!!!
forte abraço,
R.O
Os gringos estão muito putos. Leio coisas realmente absurdas na stab. Agora parece que estão vendo o negócio ficar sério.
ResponderExcluirQue foda!! Para quem não sabe, o autor do texto também fez parte dessa história de dentro dágua; inclusive com vitória em evento WQS. Sorte nossa que continua olhando a vida do ponto de vista do horizonte. Registrando, escrevendo, informando e romanceando!!
ResponderExcluir" vocês vão ter que me engulir !!!! "
ResponderExcluirPutz, consegui ler e relembrar. Vale um book mesmo. Tenho uma sobre vc, dentro desse circo; da pesada. Logo sai por aí, registrado em algum bom lugar. Abçs
ResponderExcluirQuero saber quem foram os Tops que queriam continuar a prova quinta dia 07 de junho de 2012 em Cloudbreak e quem foram os que pediram pra prova ser cancelada.
ResponderExcluirO surf é mal remunerado e merece continuar sendo. Condicoes épicas de surf e nego pede pra ir pra Restaurants, estao de sacanagem?
Renato Hickel ridiculo comemorando na transmissao de ontem que o mar vai baixar e poderao voltar a Cloudbreak.
A ASP cometeu seu pior erro dos ultimos anos ao cancelar a prova, alegando "vento".
Essa geracao do Airshow, manchou a historia da prova, se eu fosse executivo da Volcom, nunca mais patrocinava a etapa.
Aereo é o cacete, alguem aqui imagina o dia de prova sendo cancelado, com aquelas condicoes de surf, na epoca do Carrol, Occy, Shaun, Gouveia??????????
O surf nao é um esporte serio!