domingo, julho 03, 2016

Picareta

O Gato e o felino, foto genial e definitiva do Jair Bortoleto


Houve um tempo onde nada mais importava do que o surfe que você assistia sentado na areia.

Na alvorada dos anos 80, ver Picuruta pegando onda era uma experiência inesquecível.

Quando ele surge, em 1981, no Waimea 5000, podemos dizer sem exagero que testemunhamos o nascimento do surfe moderno no Brasil.

Curioso é perceber agora, 35 anos depois, que Picuruta não era o mais radical, esse mérito era do Cauli.

Nem era o mais rápido, Fred voava nas marolas do Arpex e Prainha como nenhum outro - exceto talvez Joey Buran.

Tambem havia quem fosse mais criativo, lembramos logo do fenomenal Tinga.

Tampouco seria o melhor nos tubos, Valdir era o rei.

O que Picuruta tinha era exatamente o que todos outros tinham e uma coisa nova e diferente, o futuro.

Começava pela pisada.

Quando o caçula do clã Salazar ficava em pé, sua velocidade era instantânea, não precisava balançar os braços, mexer a prancha, ficar aflito, era magia pura.

Voces não viram porque ainda não havia câmeras na praia, apenas as fotograficas.

Nós sentávamos na areia para poder ver de perto os gringos na única vez que eles apareciam aqui no ano, era nossa chance de acompanhar as novidades, fosse uma biquilha double wing swallow com canaletas, uma cordinha com colorido diferente, um short Sundek, Katin ou Quiksilver, um colete Rip Curl ou parafina com aromas distintos.

A sede pela informação era tamanha que ninguém arredava pé da praia enquanto houvesse gente surfando.

Quando chegava um amigo que não pode faltar a aula, era recebido com um entusiasmo digno de veteranos de guerra ao descrever uma batalha,

Voce precisava ver a caverna incrível que o Jim Banks pegou no Castelinho!!!

 Dane Kealoha deu uma batida e todos vimos o fundo da prancha dele aqui na areia!!!


Quem contava um conto, aumentava um ponto e as histórias iam ganhando corpo e força a cada copo de mate Leão com limão.

Rico e Picuruta, dois nomes que andaram juntos nas paginas da Visual Esportivo 


Nenhum dos garotos tinha talento ou coragem para tentar a sorte nos internacionais, apenas Gugu Buchaul com alguma coisa em torno de 15 anos e um surfe dinâmico e eficiente, á frente de todos outros meninos, mas isso já deve ter sido em 82.

A verdade é que alguns surfistas tinham o status de deuses, Shaun Tomsom, Mark Richards, Cherne Horan, Dane, Mike Ho…

Aquela semaninha era nossa janela pro mundo e Picuruta entrou pela porta da frente, sem bater, sem avisar.

Não que ele fosse um completo desconhecido, de jeito nenhum.

Já se falava dele, mas os caras mais velhos era seus adversários e não iam ficar falando de um santista com tanta reverencia.

Foi preciso que ele viesse aqui, na nossa frente, mostrar o quanto cortava a água quando rasgava, o tamanho dos leques que ainda insistiam em cair em gotas quando ele ja preparava a próxima manobra.

A turma sabia o que esperar dos gringos, sabia o que esperar do Cauli, do Fred, do Daniel, do Valerio, do Pitz, do Castejá, mas o que ninguém esperava era o Picuruta.

A violencia quando trazia a prancha de volta já avisava que precisaria de três quilhas pra aguentar os coices.

Um corpo compacto, firme, capaz de trocas de direção bruscas sem sacrificar a elegância.
Não vou entrar na mitologia dos santistas daquele tempo, isso vale um livro inteiro de histórias inacreditáveis para os rapazes exemplares de hoje.

Tudo bem, conto uma, sem dar nomes.

Naquela época havia ainda a figura do sorveteiro no calçadao do Arpoador, e o sujeito, desavisado, cada vez que ia servir uma concha de sorvete ao freguês, pegava a casquinha, abria o refrigerador, entregava o sorvete, recebia o dinheiro, dava o troco e tudo não demorava mais que dois minutos.

Pois os camaradas ficavam ali, em volta do sorveteiro, esperando a chance de poder roubar uma colherzinha…
Diante do mau humor do homem, enquanto ele servia uma casquinha, vinha um sacana e cuspia de lado dentro do carrinho.
A turma caía no chão de tanto rir e o pobre do sorveteiro ia ficando mais e mais irritado até decidir ir embora.

Pau comia direto, dentro e fora d’água.

Baterias com resultados duvidosos eram resolvidas no braço ou no grito.

Surfistas eram tudo, menos bons garotos e os festivais eram uma grande
oportunidade de negócios para alguns, se é que me fiz claro.

Nesse ambiente hostil, Almir, Lequinho e Picuruta tinham que sobreviver do jeito que dava.

Com 14, 15 anos, a gente sabia que não podia dar mole, senão rodava.

Todo mundo rodava.



Mas ninguém, ninguem mesmo, surfava como Picuruta.

Bigode e seu filho

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