quinta-feira, março 13, 2014

O Homem que não estava la

O Homem que estava la...


         É tentador usar frases de filmes como alegoria pra tentar deixar clara uma idéia.
Não resisto à possibilidade, mínima, do leitor acabar por assistir o filme e relaciona-lo ao fato aqui narrado.
Comparei mais de uma vez Kelly Slater aos inesquecíveis personagens do Clint Eastwood - Willian Munny e Harry Callahan para não me estender demais.
Cada ano que passa, Kelly fica ainda mais cinematográfico como personagem.

O nome do filme é O homem que não estava lá (escrito e dirigido pelos Irmãos Coen, EUA, 2001), a cena, escura, preto e branco, o advogado se recusa a aceitar que seu cliente acaba de confessar o crime e sai com uma brilhante defesa...
‘...Tem esse cara, na Alemanha, Fritz alguma coisa. Será ? 
Talvez seja Werner. 

Enfim, ele tem essa teoria, voce quer testar alguma coisa, cientificamente, sabe ? Como os planetas dão a volta no sol, do que são feitas manchas solares, por que a água sai da torneira, essas coisas...
Bem, voce tem que olhar pra elas.
Mas, as vezes, voce olha e seu olhar muda aquilo.

Voce não sabe realmente o que aconteceu, ou o que aconteceria se tivesse acontecido debaixo do seu nariz. Então não há ‘O que aconteceu’ ?
Não num sentido que podemos compreender com nossas mentes doentias.
Porque nossa mente...nossa cabeça atrapalha.
Olhar pra alguma coisa muda aquilo.
Eles chamam isso de ‘O princípio da incerteza’.

Parece maluquice, mas até Einstein diz que o cara faz algum sentido...

Ciência. 
Percepção. 
Realidade. 
Dúvida. 
Benefício da dúvida.

Tô dizendo que, as vezes, quanto mais voce olha, menos voce sabe de verdade.
É um fato.
Fato provado.
De certa forma, é o único fato que há.’
Corta para as duas ondas redentoras do Fanning no Pipe Masters.
Duas bombas nos derradeiros segundos das baterias decisivas que lhe valeram o terceiro título mundial.
Voce diz que valeu, eu digo que não, ou vice versa.
Seu olhar muda tudo.



Esse Pipe Masters tinha algo de arrebatador.
Tinha tanta coisa importante em jogo, quem era capaz de ousar perder algo ?
Sim, mesmo com Heats on demand e tudo!
O importante era testemunhar história sendo feita ali na sua frente, fosse na TV, na areia, na tela do computador ou no bendito telefone - quantas alternativas.



Ciência

Ninguem esperava que Miguel Pupo dropasse a melhor onda dos últimos 20 anos do Pipe Masters.
Ou melhor, esperávamos sim.
Se havia alguem nesse injusto planeta que acreditava nisso éramos nós, esperançosos brasileiros, rosto colado no monitor.
Nada mais justo do que a onda do (novo) século ser surfada por alguem de fora do círculo - triângulo ?-  Australia/EUA/Africa do Sul.
A nova ordem mundial vem destas bandas.
Preparem-se.
Pupo teve um 8.7 contra Alejo na segunda fase e um 9.07 em cima do Josh Kerr, mesmo homem que tirou o título mundial do Slater em 2012.
Jeremy Flores tem sido o surfista dos milagres em condições extremas (como esquecer Teahupoo em 2011 ?), já vestiu a coroa do campeão no Pipe Masters mas nada pode fazer diante de um predestinado Miguel Pupo.
Miguel não venceu apenas uma bateria, ganhou respeito pro resto da sua carreira.
Quando quiser remar num Pipeline de verdade, acima dos 10 pés, vão olha-lo diferente.



Percepção

Antes de começar o Pipe Masters, Medina já era candidato a melhor onda do inverno no maior saite de surfe do mundo.
Isso quer dizer que a mensagem estava dada, passado o tempo de experiência, agora é hora de partir pra cima de igual pra igual.
Nada de surfar apenas na hora da bateria ou algumas horas antes.
No meio da multidão de locais e pretendentes, body boarders, encrenqueiros e tudo mais que enfrenta Pipe em troca de exposição, Gabriel Medina já não se satisfaz com restos e quer o que é seu.
Nick Carroll notou, logo na primeira vez, que Gabriel tinha a ousadia de usar toda área onde é possível quebrar ondas em Pipe - ao invés de ficar sentadinho esperando sua vez, ou sua onda, como tantos antes dele.
No evento, Medina não poderia ter vida mais difícil, pegou o irmão do homenageado na primeira bateria e deu um verdadeiro baile no Bruce.
É inútil descrever a surra, basta dizer que fez a maior média do dia e, de quebra, meteu um alley oop no final de uma onda - detalhe, descartou uma nota 8!
Foi preciso John John para dar um fim nisso.
Tem volta.



Realidade

Florence arrastou seu segundo Triple Crown em tres temporadas - que tal ?
AInda resta vencer o Pipe Master e título mundial.
Quantas vezes ? seria prudente perguntar.
No North Shore, não sobra nada, exceto migalhas - e ele quer mais.
Sua frustração era evidente no pódio, o que é sempre um bom sinal.
Tudo indica que deixou de ser o rapaz que não liga mais pra isso, nem aquilo, chega de sorrir por nada.
Até seus vídeos andam mais introspectivos ultimamente.
No Pipe Masters, JJF bateu Medina (por pouco), Julian e Fanning sem muito esforço.
Seu calcanhar de Aquiles ainda é excesso de respeito, mas algo me diz que depois dessa derrota inesperada (para ele), Slater deixará de ser um ídolo para se tornar um adversário.


Dúvida


        Hoje é fácil dizer que o terceiro título do Fanning era certo como 2 + 2.
Com tamanha obstinação, Fanning podia ser campeão de qualquer esporte, natação, remo, rugby, porrinha ou xadrez.
Voce olha pro sujeito e percebe que existe apenas um objetivo na vida do camarada - ser campeão mundial.

O Macaco Albino não foi, em nenhum evento, o melhor surfista da temporada, nem no campeonato que ele venceu - esse mérito, voces bem lembram, foi do Medina.
Mas o diabo é que Fanning nunca perdia antes das quartas e fazer isso é tão difícil, ou mais, do que ser simplesmente o melhor.
O danado do australiano tem uma fórmula que dá certo e a usa sem pudor.
Quem não gosta, que se dane.
O que importa, no frigir dos ovos, é o título.
E já são tres...

Muito se falou, e escreveu, sobre uma possivelmente intencional interferência do Mick no JJF.
Seria como acreditar que o Flamengo, Portuguesa e Fluminense já tinham 
acertado tudo antes do Brasileirão acabar.
Fanning foi cirúrgico na disputa ao título e nas baterias mais importantes do Pipe Masters.
Num Pipeline que ele não deve ter surfado mais um punhado de vezes, Fanning se jogou em tudo que aparecia pela frente, despencando em vacas terríveis até conseguir a redenção na última e derradeira onda contra C.J. Hobgood.

Mesmíssima cena diante de um furioso Yadin Nicol.
A calma no momento mais tenso do ano, a categoria em fazer um Fade em pleno drope e o tubo consagrador não é coisa pra pessoas comuns.
Nosso olhar muda tudo...

JJF e KS11, duas gerações de domínio em Pipe


Benefício da dúvida

Logo após a final, quando perguntado, pela enésima vez, se abandonaria o circuito mundial, Slater disse, Não, esse evento me deixou puto o suficiente para continuar mais um ano.
Façam suas especulações sobre o futuro do surfe profissional, mas nunca deixem Slater de fora.
Hoje, assim como nos últimos 20 anos, Slater É o surfe profissional.
Foi o melhor surfista quando as condições realmente importavam.
Kirra, Fiji, Teahupoo, Pipe.
Claro que teve um soluço em Bells classico diante dum inspirado Willian Cardoso, mas isso faz parte do serviço.

Fez quatro finais contra duas do campeão mundial - ganhou tres.
Sua vitórias foram sempre espetaculares, um misto de tenacidade, talento puro, estratégia e explosão.
Quase todas outras vitórias do ano foram apenas fruto de uma ou duas das virtudes citadas acima, enquanto Kelly reunia todas como num feitiço fabuloso - de fábula mesmo.
Relembrem a primeira onda da final em Fiji...
Aquilo não era sequer humano, muito menos racional.

Slater passa por um momento de extrema importância emocional, basta ver como se comportou quando saiu da final do Pipe Masters.
Era seu sétimo triunfo naquele palco, ele deveria estar de certa maneira acostumado com a pompa e arrebatamento de mais uma vitória e no entanto corriam-lhe lágrimas soltas cada vez que analisava os detalhes da final.
Ele sabia que o destino tinha lhe pregado uma peça.
Andy mandou aquelas duas ondas pro Fanning!

O Careca diabólico tinha virado, subitamente, uma criança carente, aflita e insegura em busca de alento.
Nos dava a impressão que a qualquer momento ele iria abraçar todo mundo e pedir colo.
Ele sabia que era o campeão de fato, mas não de direito - não desta vez.
Na sua cabeça, todo plano estava feito, Fanning perdia, ele fazia a final contra JJF, ganhava e se aposentava com todas glórias sonhadas.
Quando acordou, Slater se deu conta que os outros sonhos tambem se tornam realidade.

Seus adversários tem tantos sonhos...

Miguelito, sonhando acordado

11 comentários:

  1. Que delicia.

    Obrigado Julio, foi isso mesmo o que aconteceu.
    Belo texto mestre.
    Bj na familia.

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  2. Ótima analise e de leitura muito agradável!

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  3. Slater já tinha oito títulos quando Fanning ganhou o primeiro. Antes de Slater havia uma democratização latente entre as lendas... Mas bravo não, bravíssimo, Adler! Vamos rodar esse filme...

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  4. Anônimo1:15 AM

    Carioca ama trabalhar!
    Consegue demorar mais do que o power rankings do surfline... KKKKK
    Bons textos, mas tu é o verdadeiro bicho preguiça!!!
    Abs,
    Santos Surfer

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  5. gustavo camarão8:40 AM

    Que texto!
    clap clap clap bonequinho em pé!

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  6. O último parágrafo é foda…

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  7. Anônimo11:32 PM

    O que dizer do melhor texto no nosso cenário surfístico nacional, simplesmente, esculachou Julio, como sempre! E sem puxar mais brasa pra nossa sardinha, Nick Carrol ficou pra trás, comentários cirúrgicos! Abraço, Bruno Rozenbaum.

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  8. Santiago Bebianno8:55 AM

    Parabéns Quencas, texto digno de aplausos.

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  9. Anônimo2:52 PM

    Atualização: Medina campeão da primeira etapa de 2014 do wt!!!

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  10. ler isso aqui chega a ser melhor - ou quase - que assistir à etapa lá da areia de Ehukai.
    Tio Juio em grande forma.

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