Portugal, pra mim, começa - ou termina - aqui + Foto do Ricardo Bravo |
Minha ignorância pelo lugar era imensa. Conhecia apenas o bacalhau e as anedotas. Ao chegar na Ericeira, depois de dirigir desde Pantin na Espanha, dormir no posto de gasolina, todos 5 apertados no Peugeot 205 Junior, a decepção não podia ser pior. Vento norte gelado, chuva e nada de ondas por dois dias completos.
No terceiro dia, grande, mexido, frio.
No terceiro dia, grande, mexido, frio.
O Buondi Pro era o final da perna européia, sexto campeonato, seis semanas rodando de praia em praia buscando fama, dinheiro, pontos, mulheres e ondas - nunca numa ordem lógica.
Competir era a única forma que tínhamos para passar o dia na praia disponíveis para os humores do mar. Ou melhor, haviam outras, mas era daquele jeito irresponsavelmente comprometido que tentávamos enganar o tempo.
Tudo em nome da diversão.
O problema é que a dor era tão intensa quanto a satisfação.
Quando cheguei em Portugal, a tensão dos dois meses dividindo carro, casa e mesa com meus 4 companheiros de batalha atingira o grau máximo.
Quase todos já tinham se desentendido entre si e decidi me afastar da turma. Fiquei num quartinho alugado na casa de uma viúva e sua filha, bem próximo ao centro da vilazinha.
Ericeira em 1990 ainda era uma vilazinha, não tinha esse jeito de cidade que tem hoje.
Meus desejos eram dum menino estúpido do Rio de Janeiro, completamente ignorante do país que visitava. Ficava intrigado com tantas senhoras vestindo preto nas ruas, tinha muita curiosidade de experimentar toda sorte de doces que via nas pequenas padarias, até comprei um livro do Fernando Pessoa para tentar entender um pouco mais daquele lugar que me despertava mais afinidades do que França e Espanha - para além do idioma.
Foi quando as ondas chegaram de forma monumental e minha relação ficou ainda mais completa e cada vez mais íntima.
Dirigir sem saber direito para onde se vai num lugar como a Ericeira pode ser uma experiencia fantástica, principalmente quando o mar furioso se acomoda nas baías e recortes da costa.
Encontrei, sem querer, os Coxos. Minha impressão era que tinha quase 10 pés de ondas como nunca tinha visto em canto nenhum.
Lá fora estavam Ross Clark Jones e Tom Carroll, sozinhos, se divertindo a valer. Nem me passou pela cabeça entrar no mar.
Logo no outro dia, surfei a Pedra Branca como só vi em filmes e fotos, sem sequer saber o nome da onda. Vi um australiano (que ninguem mais lembra) chamado Matt Cattle pegar tubos inacreditáveis na minha frente.
O Reef foi surfado de tudo quanto é jeito, por gente do calibre do Brock Little ao Shane Powell.
Curren venceu o campeonato como se surfasse em casa, voltei ao Brasil com vontade de descobrir mais sobre o lugar.
Em 1993 conheci João Valente durante o OP Pro na Califórnia e passei a frequentar Portugal duma maneira completamente diferente.
Cada viagem era como se fosse uma visita guiada, explicada com os detalhes em voz alta, entusiasmados, sempre gesticulando muito, com direito a degustação do que havia de mais típico em cada região.
A única voz que o surfe tinha em Portugal era a Surf Portugal e uma outra revista que já nem lembro do nome.
Hoje o surfe tem pelo menos duas vozes que ecoam semanalmente nos grandes meios, Gonçalo Cadilhe e Pedro Adão e Silva.
Na Australia não há dois surfistas que publicam mensalmente seus dois dedinhos de prosa nas revistas de surfe, todas 5 delas, com o prestígio que Cadilhe ou Adão e Silva tem em Portugal.
Nem nos Estados Unidos temos dois camaradas que fazem qualquer coisa por uma hora de surfe dividindo seu tempo entre grandes diários e colunas em revistas de surfe.
Só mesmo em Portugal, onde até o Rio Tejo vira paisagem de revista de surfe, só mesmo em Portugal, lugar tão atrasado há 25 anos, que a tecnologia dá seus primeiros passos nessa pequena comunidade do surfe.
Foi na Figueira da Foz que fizeram o primeiro webcast em 1996 e 14 anos mais tarde foi em Peniche que o 3D foi testado pela primeira vez.
A loja símbolo da nova fase de um dos gigantes do surfe mundial escolheu Portugal para estabelecer seu novo modelo de investimento.
Chega a ser engraçado que aquele lugar de estradinhas apertadas e perigosas tenha hoje tantas auto-estradas, que de certa forma serve de metáfora pra tanta coisa que aconteceu e ainda acontece nesse país quase renegado pelo resto do continente e que hoje é diariamente redescoberto pelos europeus como melhor destino para um final de semana prolongado.
Não digo que o surfe vai sanar os problemas que Portugal ainda carrega, santa ingênuidade, mas já mudou seu jeito de olhar para as coisas ao seu redor. Basta o tempo que voce dedica lendo uma revista de surfe, olhando o mar ou fechando os olhos, pensando na quantidade de ondas perdidas que ainda precisam da sua companhia.
Se isso não te deixa no mínimo mais otimista, tenta o tênis.
Coxos pelo Manel - se não me falha a memória |
[Texto publicado na edição de 25 anos da Revista Surf Portugal e na Revista Hardcore]
Julio, relato lindo e emocionante! Como um brasoluso que sou, em boa parte da narrativa, me vi no teu lugar. Saude pra familia! Abraço, Vasco.
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