
O Rombo em Contexto 1
Antes do início do circuito de surf da International Professional Surfers, não existiam critérios objectivos para os convidados dos campeonatos profissionais no Havai. A maior parte dos convites era distribuída aos havaianos, em reconhecimento das suas prestações no free surf segundo as observações dos organizadores e da comunidade local. Um método habitual entre os que sonhavam em competir ali era escrever cartas aos organizadores das provas, a explicar que eram excelentes surfistas e, basicamente, a implorar por um lugar, nem que fosse de suplente.
Bustin down the door tem lágrimas e isso quase sempre denuncia um documentário piegas, melado, chorão.
No surfe não há muito espaço para lágrimas.
Estamos eternamente associados a belos sorrisos e celebração, quem duvida que o surfe é diversão ?
Nos é vendido assim, em embalagens muito bem boladas, coloridas, lacinho dourado e tudo.
Quantas vezes voce já se pegou respondendo a pergunta besta e fácil - o que o surfe representa na sua vida- com um cliche aborrecido.
Frase que nos resume: O melhor surfista é aquele que mais se diverte.
Pois Bustin down the door, filme dirigido por Jeremy Gosch exibe nosso lado escuro e fascinante.
A diversão ali tem outras formas completamente fora de moda hoje em dia.
O Rombo em Contexto 2
O rastilho dos acontecimentos da temporada de 76/77 foi um artigo escrito por Wayne Bartholomew intitulado, precisamente, ‘Bustin’ Down the Door’. Até hoje Rabbit afirma que, apesar da agressividade do título e do tom auto-celebratório do surf que estava a fazer, o conteúdo geral do artigo era absolutamente reverente e respeitoso para com os surfistas havaianos. Eis alguns excertos fundamentais: “O facto é que quando és um puto emergente da Austrália ou de África, não podes simplesmente entrar pela porta dos fundos e esperar receber um convite para os campeonatos profissionais no Havai. Tens de arrombar a porta da frente antes que eles te ouçam bater. (…) Para chamar a atenção mediática e competitiva, tínhamos de entrar nos dias mais animais em Pipeline e Sunset e, literalmente, tentar o impossível.”

Kanga é uma besta
Ian Cairns era um brutamontes com rara habilidade para machucar paredes volumosas e assustadoras. Vinha do inóspito oeste da Austrália (nasceu em Kew, perto de Victoria), quase dois metros de altura, loiro, forte como um rinoceronte, dono duma rasgada de front-side estupidamente violenta.
Kanga, como o chamavam, cresceu surfando os reefs perto de casa em Margareth River, foi um monte de vezes campeão regional, representou a Austrália em dois mundiais, 70 e 72, chegou no Havaí botando pra quebrar.
A banca era tanta que ganhou o Smirnoff Pro em 1973 com 21 anos, foi segundo no Duke Kananamoku Classic de 74, em 25 pés de onda em Waimea ficou em primeiro no Duke de 1975 e segundo no Smirnoff no mesmo ano.
Sua arrogância e agressividade quase custou-lhe a vida no inverno havaiano de 76: Comprei uma espingarda, dormia com um bastão de baseball debaixo do travesseiro. Se aqueles caras tentassem me pegar novamente, eu dava um jeito de chegar no carro (onde estava a espingarda) e matava um, disse Ian Cairns lembrando da ocasião que o caçaram como cão ladrão pelo North Shore.
Kanga é um dos principais personagens do documentário produzido por ninguem menos que o campeão mundial de 77 e mocinho dessa bela e trágica fábula, Shaun Tomsom.
O Rombo em Contexto 3
Ian Cairns liderava o ataque demencial às ondas, sempre na companhia do seu jovem “protegido”, Wayne ‘Rabbit’ Bartholomew. Ambos protagonizaram momentos de antologia, como a ocasião em que, acabados de desembarcar do avião, entraram num Pipeline gigante e, mesmo (ou exactamente por isso) a ver que as direitas não passavam de horrendos close outs, Cairns ordenou a Rabbit: “é proibido ir para a esquerda”. Sem outra opção, ambos entregaram-se então a um duelo suicida para ver quem se deixava ficar com o estilo mais casual dentro das enormes cavernas.

Pitu (Shaun The Prawn)
Shaun Tomsom dava raiva, confessa Phill Jarratt (autor, entre outros, do clássico Mr. Sunset), educado, articulado, surfista fenomenal e ainda por cima fazia enorme sucesso entre as mulheres.
Alem disso tudo, Shaun é um surfista que todos admiram desde sempre, sem manchas nem desvios em mais de 30 anos nos holofotes. A idéia de fazer um filme sobre esse tempo tão falado e tão pouco compreendido pela indústria bilionária que impulsiona o surfe no século 21 partiu dele. Foi Shaun que uniu um timaço de entusiastas, entre eles Jarratt, que escreveu o texto, Matt Warshaw que pesquisou e o inusitado narrador, indicado duas vezes ao Oscar, o ator Edward Norton.
Shaun voltou à cena faz uns 5 anos, depois de quase 15 trabalhando quieto no seu canto, sem ser muito celebrado.
Falava-se pouco dele nos anos 90, era raro alguem lembrar que Shaun foi o primeiro dos surfistas de ponta a surfar com as pranchas do Al Merrick e passava temporadas em Santa Barbara testando os foguetes, surfando Rincon e influenciando Curren, Mearing, os irmãos George e quem quer que lá aparecesse.
Slater é a evolução de Tomsom, sem cabelos.
Pela primeira vez, vemos Shaun falar dos anos setenta com os dentes trincados, sem o romantismo babaca que cerca a época.
Eu tinha ciúmes, eu queria estar no lugar dele, relembra Shaun quando fala de Mark Richards no Smirnoff de 1974, a primeira oportunidade daqueles jovens de participar dos grandes eventos havaianos.
Bustin Down the door revela de onde vem a chama que incendiava Rabbit, MR e Shaun, num tempo distante onde os vencedores não eram acusados de vender sua alma.
Rombo em Contexto 4
O ataque a Rabbit ocorreu dentro de água em Sunset Point no dia do seu desembarque para a temporada de 76/77. Quando o viram a chegar ao pico, um grupo de heavy locals dispersou o crowd e cercou o australiano, agredindo-o até a perda dos sentidos. Depois disso, Rabbit teve de passar dias seguidos escondido na mata, pois ninguém lhe dava abrigo com receio de represálias. Outros também sofreram perseguições e espancamentos. Ao fim de umas semanas, a família Aikau, por intermédio do seu mais proeminente membro, Eddie, amenizou a situação, acedendo em encenar um julgamento público no qual os australianos receberam a permissão para surfar no North Shore e competir nas provas.

Sexo e tubos
Dos cinco cavaleiros do apocalipse, Ian Cairns, Shaun, Rabbit, Peter Towned e MR ( opa! o sexto, primo do Shaun, Michael Tomsom tambem está lá.), Ian e PT eram os veteranos, Shaun a grande promessa, Rabbit o rebelde e Mark Richards o fenômeno.
No seu segundo inverno, em 1975, com absurdos 18 anos, venceu o Smirnoff em Waimea e o World Cup em Sunset (isso sem falar no vice do Coke Classic em casa, na Austrália) pilotando as letais guns de Tom Parrish com o raiozinho da Lighting Bolt.
Numa analogia, Richards seria um misto de Andy Irons e Mick Fanning, ambos acomodados num corpo comprido, curvado e desajeitado.
Alias, Andy e Mick tem juntos a mesma quantidade de títulos que MR ganhou na sua curta carreira - Richards abandonou o circuito em 82, depois do quarto título mundial, tinha 26 anos, mesma idade que Fanning quando venceu seu primeiro...
Grande rival de Shaun no filme clássico que batizou a geração, Free Ride, Richards aprendeu a shapear cedo (com 15 anos!) e se viu obrigado a criar uma prancha que se adaptasse ao seu estilo, completamente diferente do resto.
Partindo duma prancha esquisita com duas quilhas que Reno Abellira levou para Austrália em 76, MR foi aperfeiçoando a biquilha até que em 1979 ninguem mais seria capaz de superá-lo com suas cavadas precisas e rasgadas curtas e rápidas, pedra fundamental do surfezinho que voce e eu fazemos hoje.
Numa das histórias mais bacanas do filme, Rabbit conta que para entrar num dos eventos exclusivos para convidados em 74, ele, MR e Shaun escreveram cartas para os organizadores dos campeonatos implorando por uma vaga.
No Smirnoff, dos 24 convidados, 22 eram havaianos. Fred Hemmings, organizador, avisa que abriu uma vaga. A tensão aumenta e todos esperavam que sua carta tivesse efeito na decisão. Hemmings chama Mark Richards, que vibra com a chance, mas antes de pegar a camiseta de competição, MR precisa pagar os 50 dólares da inscrição. MR não tem essa grana. Rabbit poderia ficar ali calado e esperar que Fred chamasse outro, mas num gesto nobre, empresta as 50 pratas para Richards.
Mark Richards, então com 17 anos, vence sua primeira bateria em Sunset, deixando pra trás os havaianos Sam Hawk, Larry Bertleman e Michael Ho.
Naquela noite o barulho era ensurdecedor e na manhã seguinte aqueles jovens veriam as maiores ondas de suas vidas na baía de Waimea.
Rabbit agradeceu a Deus por ter emprestado a grana e não ter que enfrentar aquelas bestas.
MR não tinha alternativa.
O Rombo em Contexto 5
O título de 1976, oficialmente o primeiro título mundial de surf profissional, atribuído a Peter Townend foi, na verdade, outorgado em retrospecto. Chegados ao fim do ano, dois dos organizadores das provas havaianas, Randy Rarick e Fred Hemmings, fundaram a IPS e, com a ajuda de PT, que sistematizara meticulosamente todos os resultados dos campeonatos disputados nesse ano, chegaram à conclusão de que o australiano tinha sido aquele que acumulara mais pontos, mesmo sem ter vencido nenhuma prova. Durante a cerimónia comemorativa do título inaugural da IPS, num clube de canoagem em Waikiki, os jornais queriam uma fotografia a PT com a taça. O único problema era que não havia taça nenhuma. Vai daí, alguém foi a sala de troféus do clube, agarrou num qualquer, escondeu a placa das inscrições e Townend lá pôde ser fotografado para a posteridade.

Os dentes ou a vida
'Eu e Shaun tinhámos um pacto: aconteça o que acontecer, complete o drope. Use todo sua habilidade, todo seu talento, todo seu instinto.'
Pipe não era uma onda muito surfada por back-siders e aquela geração tinha o compromisso de quebrar todos tabus.
Wayne 'Rabbit' Bartholomeu passou parte do inverno de 77 escondido no mato. O simples fato dele ter apanhado do jeito que apanhou, perder os dentes, receber o castigo de ter sua cabeça a prêmio, assim como Kanga, e resistir como resistiu, é admirável.
Tudo por um texto quase inocente que escreveu para a revista Surfer e que emprestou o nome à sua biografia, Bustin Down the door, inspiração do documentário.
Rabbit foi o visionário que não teve medo, ou alternativa, de constatar que seu futuro seria surfar.
Estavam sentados na beira do mar, depois daqueles dias mágicos de surfe no North Shore, ele e seu amigo e adversário Shaun Tomsom:
O que voce vai fazer daqui pra frente, Rab ?
Eu vou me tornar surfista profissional.
Aquilo soou estranho para Shaun. Surfista profissional ? Que idéia mais maluca e fascinante...
Aqueles homens estavam ali, no meio do caldeirão que era o inverno havaiano, sedentos por reconhecimento, por fama e pelo pouco dinheiro que seria suficiente para aguentar até o próximo campeonato.
PT e Ian Cairns seriam responsáveis pela criação, junto de Randy Rarick e Fred Hemmings, da IPS entidade que precedeu ASP, escreveram regras que até hoje permanecem, inventaram um circuito do nada e ainda terminaram primeiro e segundo em 76.
No ano seguinte, Shaun cumpriu seu destino e tornou-se campeão mundial do primeiro circuito pra valer e em 78 Rabbit finalmente pode levantar seu caneco.
De 79 até 82 Mark Richards reinou.
Em 1983, a dupla PT e Kanga tomaram a IPS de Hemmings e criaram a ASP.
O Rombo em Contexto 6
No final da atribulada temporada de 76/77, o australiano Peter Drouyn apareceu no Havai durante a reunião onde se apresentava o circuito mundial de 1977, avançando a informação de que o primeiro evento da temporada, a ser disputado em Burleigh Heads, iria estrear um novo formato de competição, criado por ele próprio, e chamado man-on-man. Na sua biografia, Rabbit recorda o momento em tons épicos: “Drouyn deu a notícia como Moisés a anunciar os dez mandamentos. ‘Há uma nova frente de combate no surf profissional. Chama-se Burleigh Heads, chama-se surf man-on-man e quero ver sangue na água! Nós somos os gladiadores!’”

Pe na porta
Deixei o filme de lado para falar dos Homens por trás dos mitos e ainda há muito para escrever.
A trilha é empolgante e comovente, tem T. Rex, Rolling Stones tocando Paint it Black e, claro, Fame do Bowie, talvez numa homenagem ao Rabbit.
A edição é elegante como uma rasgada do Ian ou uma cavada do PT.
Bustin Down the door não tem uma mensagem endereçada ninguem, não tem recados ou moral, tem histórias bem contadas por quem as viveu intensamente e nunca vão se livrar delas.
O filme vai contra toda linha do romantismo oportunista que paira hoje pelas redações, ilhas de edição e line-ups. Desta vez existe sofrimento, dor, frustração, sacrifício, exatamente como na vida real, sem a maquiagem perversa da diversão pela diversão.
Bustin... é o nosso When we were kings.
Rabbit, Shaun, MR, PT, MT e Kanga não são os únicos responsáveis pelo que o surfe representa e se tornou hoje.
A indústria bilionária e os surfistas profissionais com salários milionários não devem a esses camaradas nada alem de respeito.
Sorte de quem reverencia seus ídolos dessa maneira.
O Rombo em Contexto 7
Referências significantes à era Bustin’ Down The Door através de livros e filmes
Filmes: Free Ride (Bill Delaney, 1977); Playgrounds in Paradise (Alan Rich, 1976); Tubular Swells (Dick Hoole/Jack McCoy, 1977); Stylemasters (Greg Weaver/Spyder Wills, 2006); Pipeline Masters (Stacy Peralta, 2006)
Livros: Bustin’ Down the Door (Wayne ‘Rabbit’ Bartholomew e Tim Baker - HarperSports, 1996); Mr. Sunset – The Jeff Hakman Story (Phil Jarratt – General Publishing Group, 1997); Eddie Would Go – The Story of Eddie Aikau, Hawaiian Hero (Stuart H. Coleman - MindRaising Press 2002), The Perfect Day – 40 Years of Surfer Magazine (Surfer Magazine, 2001), The Best of Surfer Magazine (Chronicle Books, 2007)
* Rombos em contexto por João Valente.