quinta-feira, outubro 14, 2004

[Dois anos e tal de atraso.
A entrevista foi feita em Abril de 2002, nunca publicada, pois absolutamente desinteressante para nossa imprensa morde-assopra.
O momento é bom, o projeto de fazer um vídeo sobre Gouvêia virou filme, foi selecionado pro maior Festival de cinema da América latrina e levou o prêmio do júri prapular, devidamente acompanhado de um protesto para comprovar que toda unanimidade é burra.]



“Ora, para o Poeta, o díficil é não voar, e o esforço que ele deve fazer é esse.”
Quem disse foi João Cabral de Melo Neto, poeta pernanbucano, nascido no dia 9 de Janeiro de 1920 na rua da Jaqueira, em Recife.
Bem uns 46 anos depois nascia outro poeta naquele mesmo Pernanbuco, mas esse preferiu ir logo ao Mar e resolveu que ia ser surfista – nem desconfiava que um dia seguiria os passos do João, o Pedro.
Pedro Cezar Duarte Guimarães, nunca gostou muito dessas solenidades do nome composto e rapidamente foi apelidado de Pepê, feito o outro Pepê, carioca, surfista famoso, patrocinado pelo Jornal do Brasil e campeão por vocação.
Junto de Burle, Eraldo, Paulinho Porrete, Fred Barney e Fábio Quencas, Pepê fez parte de uma geração de surfistas recifenses extremamente talentosos e competitivos que chegou causando grande impacto em meados dos anos 80 no nordeste e, de quebra, no resto do Brasil.
Burle ainda tinha o apelido de Carlinhos “Half” e lembra da seriedade de Pepê em 1986:
- “Ele sempre me falava que eu tinha que ir pro Rio, se quisesse mesmo ser um surfista profissional, então fiz as malas e fui morar na casa dele, em Ipanema. Era impressionante a dedicação e profissionalismo do Pepê. Ele filmava tudo e depois assistia pra consertar os erros. Ninguem fazia isso.”
O intercâmbio era bem menor do que hoje, as viagens feitas de “Cata-corno”, dois dias de ônibus do Recife até o Rio de Janeiro, os cabras ralavam feito a pôrra e aos pouqinhos, cada um na sua, iam conquistando precioso espaço na mídia, ainda exclusivamente carioca com pouquíssimas exceções.
As categorias ainda eram divididas em Profissional e Junior - começava a engatinhar uma nova, chamada “mirim”.
Amador, assim como a gente conhece hoje, não existia.
Pois o Pepê já era um amador nato, como ele próprio atentou em texto brilhante no extinto jornaleco WET PAPER, onde foi editor, juntamente desse que assina as mal-traçadas. O texto chamava a atenção do leitor para o radical da palavra amador, extraído de amor.
Nem perco o seu tempo com esse papinho piegas, porque na verdade verdadeira, a gente quer mesmo é atenção - e dinheiro.
Sim, ah! Voltando à nossa história, difícil era não voar…
Pegou um avião depois de ganhar meia dúzia de campeonatos e se mandou pra Califórnia, que nem na música do filme “Menino do Rio”: ‘Garota eu vou pra Califória…viver a vida sobre as ondas…o meu destino é ser star…’.
Xi! Esqueci de contar que Pepê foi ao Peru com 16 anos e ganhou um campeonato com um ‘tres sessenta’, manobra muderna da pré história.
Pois na dourada ( não ia perder esse clichê…) Cailfa, Pepê soube que teria um tal World Titles, isso já era 1984, chamou Eraldo e Ferrugem, Cézar Baltazar, bi-campeão carioca profissional, queria formar um time pra concorrer com os gringos.
Ferrugem não podia correr o mundial amador pois já tinha embolsado um tutu nos eventos pro, então vai só de Eraldo e Pepê.
Essa conversa voce continua na página______ desse mesmo jornal.
Sexto lugar no mundo entre os juniores foi o suficiente pra sustentar a ilusão de uma carreira de surfista profissional de revista.
Atirou-se ao circuito mundial sozinho, passou logo uns seis meses no Havaí na sua primeira temporada, surfou Pipe, Sunset e Waimea.
Numa determinada caída em Pipe 15 pés, sinistro, famosa pelo desempenho de Curren numa Gunzeira amarela, Pepê resolveu que tinha pelo menos que entrar e pegar uma onda. Peter King, ainda moleque, agarrou o Pepê pelo pescoço e implorou pra ele não cair: “Rapaz, tu não tem que provar nada pra ninguem!”, alertava o camarada.
Caiu apavorado, mas caiu.
Do Havaí, foi pra Austrália competir contra os melhores do mundo na perna mais temida do circuito.
Rodou costa a costa acompanhado de outro companheiro de ilusão, que surfava veloz e elegante, Ricardo Martins, bem antes de sonhar em se tornar o maior shaper do Brasil.
Desistiram rápidinho dessa vida, diante do talento absurdo de Nicky Wood, Matt Archbold, Damien Hardman e Brad Gerlach. Nessa viagem, Pepê começou a filmar tudo que via, e se filmar tambem pra ver se aprimorava o estilo e a força nas manobras, como Burle atentou.
Nessa brincadeira, acabou criando um estilo de fazer vídeos que até hoje é copiado aqui na terra dos Tucanos de rabo preso.
Cambito 1, 2 e 3, foi uma pancada de backside do Renatinho no surfe brasileiro, influenciou uma penca de moleques, de Raoni a Trekinho, Marcondes a Pigmeu.
Era pouco.
De sua cabecinha inquieta veio “Trocando as bordas”, vídeo que fez sob encomenda da fábrica de pranchas Wet works, inovando a antiga fórmula criada por ele mesmo- subvertendo o ritmo de como editar um vídeo de surfe e voltando às raízes dos velhos filmes de surfe, com ritmo mais lento, animações e mais: Acrescentou a poesia ao estilo de vida mais poético que, nós surfistas, podemos desfrutar.
Sim, eu dizia, o difícil era não voar.
Tirou seu brevê, lançou seu primeiro livro de poesias em 2000, “Puizía” (7 letras, 2000, 15 Reais, www.7letras.com.br ), cunhou a frase “Olhar a vida do ponto de vista do horizonte” e nos definiu como poucos.
Uma instalação de imagens e poesia foi criada especialmente para o lançamento do livro, 3 telões interagindo, imagens de ondas, palavras e crianças brincando, era tudo – talvez o melhor retrato jamais pintado sobre essa gente bronzeada que só quer mostrar seu valor.
E assim chegamos em 2002, ano de Copa, outro livro de poesias, desta vez escorrendo surfe das páginas, sal puro, chama-se “Concepção de frases em ninhos de água” (7 letras, 2002, 15 Reais, www.7letras.com.br )
Como os leitores mais atentos podem perceber, e aqui não desejo injuriar ninguem, Pepê decidiu assumir (Epa!) o mané surfista que vive dentro daquele músculo que fica ligeiramente acima do umbigo, mais pra esquerda um bocado, ao lado do seu( e tambem dele) mamilo direito.
“Tubo é ninho de água”
Nosso poeta Maior, Manoel de Barros, exato oposto do poeta menor, que nunca escreveu prefácio pra ninguem, rabiscou a seguinte epígrafe para “Concepção de frases em ninhos de água”:
“Notei que é sobre as ondas que sua poesia gorgeia.”
Um futuro e ambicioso projeto homenageando Fábio Gouveia, o Manoel de Barros das ondas, deve ser o próximo passo desse surfista brasileiro que tem obra única – e indispensável-, e que não cansa de produzir pedacinhos de arte com areia, água salgada e um punhado de frases e imagens maravilhosas.
Na contra capa do livro, a frase “chave de ouro” encerra o livro:
“Um surfista olhando o mar…
está vendo ou está sendo ?”


segue a entrevista ------




P - Vamos começar do começo, com sua licença poética, sua carreira de surfista profissional iniciou ainda como amador, a pergunta é a seguinte: Como era o circuito mundial em 86/87 e quem viajava contigo ?

R- Quando me profissionalizei, em agosto de 86, sai do Brasil (logo em outubro de mesmo ano) com a seguinte utopia: correr todas as etapas do Circuito Mundial, aprimorar meu surfe e, se não conseguisse morar de vez lá fora, ficaria lá o máximo de tempo possível. Vendi tudo que tinha na época (é engraçado lembrar os ítens - aparelhos de ginástica para engrossar os cambitos, pranchas pequenas, Fiat 147 -) e comprei uma passagem com 12 meses de validade. O trecho era Rio - Los Angeles - Honolulu - Sydney - Honolulu - Los Angeles - Rio. Lembro do Joca Secco e da Ana Laura (na época
namorados... hoje casados e com filho) me zoando, dizendo que eu seguiria o circuito com uma panela de macarrão para não passar fome. Tinha acabado de completar 20 anos e acreditava fielmente que iria fazer uma campanha inédita na Tour. Viajei com minha namorada (Nádia Bambirra), que também vendeu tudo que tinha e fomos inicialmente pro Hawaii. Moramos 2 meses dentro de um trailer abandonado no quintal do Mark Foo, que morava numa mansão em Waimea .Chegamos lá em Waimea já no primeiro dia, olhamos sua casa cheia de quartos empilhados de gente pagando caríssimo, e, quando
vimos um trailer velho de bobeira no quintal, fizemos uma oferta surpreendente ao Big Wave Rider havaiano: reinventaríamos o trailer o pagaríamos 250 dólares por mês. Foi maravilhoso brincar de casinha dentro de um micro trailer... parecia um fábula regada a muito surfe todos os dias e mais os campeonatos da Tríplice Coroa Havaiana. O Circuito naquela época (já fugi muito do foco de sua pergunta) era somente a A.S.P (não tinha duas divisões como hoje... dabucetê e dacuquêésse WCT e WQS). Eram mais ou menos 150 trialistas, 14 pré convidados (os back fourteens) e os Top 28, 28 convidados principais... já não lembro direito. Durante onze meses de viajem corri a perna havaiana (fiquei 4 meses na minha primeira e única temporada no Havaí) com os campeonatos principais em Sunset e Haleiwa, depois a perna australiana (viajei a costa leste inteira de Bells em Victoria até Noosa Heads no Norte de Queensland - equivalente a uma viagem no Brasil de Garopaba até Porto de Galinhas com todos os eventos e aventuras no caminho. Grande parte dessa viagem foi junto com o Ricardo
Martins, que pegava pa cacete e reclamava mais ainda.), depois Havaí de novo, dessa vez para correr Sandy Beach com Terry Richardson e Barton Lynchs de companheiros de quarto. Depois Califórnia, já na volta, onde competi e filmei todo o Stubbies em Oceanside e o OP Pro em Huntigton.
Depois de toda essa maratona fiquei empolgado com todo o material de vídeo que tinha nas mãos... foi aí que resolvi fazer o primeiro vídeo de surfe; tinha vinte anos naquela época.

P - Sem sair da competição, resuma a historinha do mundial amador de 84 - não se esqueça dos detalhes...

A maneira como lembro do Mundial de Amadores de 84 mudou bastante com o passar do tempo. Já se vão 18 anos... é incrível que tenho até hoje a camiseta de competidor - as traças de meu armário parecem ter sido misericordiosas com ela. Atualmente acho a camiseta mais emblemática do que o troféu... a leitura que faço hoje de tudo que vivi naqueles dias passa por um raciocínio menos factual e mais poético... é como se a nostalgia estivesse pendurada no quintal e fosse transcolorando com os amanheceres e os anoiteceres. Antigamente me sentia (junto com Eraldo Gueiros, que correu o campeonato comigo) o pioneiro, o cara que foi lá e inscreveu o Brasil na I.S.A. por conta própria e conseguiu um resultado expressivo e blá, blá, blá. Hoje gosto de lembrar das cores do uniforme da Austrália (verde e amarelo fluorescentes), da luva ousadamente cafona e ridícula que o Gary Elkerton (Kong superstar) usava, da pintura absolutamente artística das
pranchas do Dave Macaulay, das americanas eternamente boqueteiras dando gritinhos em BrookHurst Street, do talento de Kaipo Guerrero, das performances incomparáveis do Damien Hardman na marola, das noites que passei nas tendas de Ventura escutando Vangelis e Ultravox e pensando nas baterias do dia seguinte, etc, etc... lembro vividamente do Carlos Leite (Kelly Slater) com doze anos de idade surfando do ladinho em Oceanside entre uma bateria e outra (ele não foi
qualificado para a categoria júnior daquele mundial) e lembro sobretudo (agora com a serenidade de quem vê pelo retrovisor) que acreditei que depois daquele mundial eu seria um Top Surfer internacional. No final das contas, invariavelmente, o surfe ensina a cair.


P - Agora, meu filho, como foi parar fazendo poesia que ninguem compra, ninguem lê ?

Comecei a escrever versos aos 12 ou 13 anos. Versos ingênuos, românticos e cheios de rima... um deles virou letrinha de música tocada e cantada por Fred 04 num sarau de minha escola a 500 anos atrás (Colégio São Luís), os outros foram parar nas mãos das meninas e os mais bem encaminhados foram jogados fora não me pergunte onde. Fico feliz que o impulso da publicação tenha vindo somente depois dos 30 anos, quando lancei o Puizía.

P - Sim, mas antes voce já fazia vídeo (vagabundo é a putaquiupariu!) que eram aclamadíssimos pela nossa insossa crítica especialzada mas não vendiam mais de meia dúzia de cópias...

Fazer vídeo é escrever na fita. Editar é pontuar. Continuo fazendo vídeos (muito pouca coisa de surfe, é verdade) e quero fazê-los cada vez mais. O vídeo é um território que oferece muita liberdade de linguagem sonora e visual... vou dejuvenescer praticando vídeo.

P - Seu primo acabou de levar 50000 dólares de prêmio pela maior onda surfada em 2001. Voces foram juntos para o Hawaii pela primeira vez em 86, cuma é que foi a sua primeira vez ?

É irônico... minha primeira vez foi minha única vez. Foi muito intenso pois eu saí do Brasil no finalzinho de outubro e fiquei largado no Hawaii até março (pouquíssima gente faz isso hoje em dia... e mesmo na época, os gringos mais abonados iam e voltavam pra casa algumas vezes durante a chamada temporada havaiana); eu sou de uma época que os modelos de referência mais próximos e bem sucedidos no Hawaii eram Valdir Vargas, Valério, etc... gente que ia pro Hawaii com o sonho de aprender a cortar água firme e ficava por lá pelo menos 3 meses. Minha primeira temporada foi, coincidentemente, a primeira temporada do Burle também, que já havia morado em minha casa no Rio por 6 meses. Além de primo distantes éramos amigos próximos de viagens e competição (tive uma amizade assim também com o Rodrigo Osborne) e portanto eu fui buscá-lo lá no aeroporto de Honolulu no dia que ele chegou. Já no caminho para o North Shore (com as coisas todas dentro do carro) demos uma caída show em Laineakea bombando 8 a 10 pés e o cabra rasgou o coletin verde da mormaii
nos primeiros caldos.
Eu peguei muita onda durante toda essa temporada. De todos os tamanhos e em todos os lugares de Mokulei até Laiê (já quase no East Shore). Foi uma época mágica de minha vida... lembro de ter quebrado 7 pranchas ao meio, além de ter visto todos os espetáculos e baixarias que uma temporada oferece.

P - Uma bela campanha como amador, razoável como pro, não largou tudo muito cedo ?

Quando penso hoje que larguei tudo aos 21 anos fico intrigado. Podia ter aproveitado e prolongado com mais abandono e poesia as arestas que uma vida de surfista profissional oferecia. Acontece que eu tava sem patrocíncio na época (o falecido Valério havia me prometido um salário e ficou me cozinhando por mais de dez meses) , estressado com uma seqüência de
derrotas em primeiros rounds e sobretudo já tinha outros interesses bem definidos como essa história de fazer vídeo, que, subitamente me deixou apaixonado pela imagem e pela palavra...
É bom que fique claro, contudo, que apesar de eu ter largado o cenário competitivo e nunca mais ter vestido uma camiseta de competição eu continuo vidrado no mar... e vice versa. Continuo olhando ondas e suas curvas salgadas, continuo cortando águas, enfim continuo colhendo exílios e versos do ponto de vista do horizonte.


P - Editor assistente da Fluir, fazendo mais pautas do que o editor chefe, depois editor na TV com o Boca e o Antônio no Realce, diretor do primeiro vídeo voltado para o surfe de "high performance", isso em 87, 3 Cambitos, "Trocando as bordas", dois livros. Posso considerá-lo o principal autor - pra não recorrer àquela palavra abominável "artista" - no nosso meio, que sempre foi meio e nunca inteiro. O que voce espera devolver ainda pro surfe ?

Em primeiro lugar obrigado pelo abominável.
Em segundo lugar não fiz nada pensando em devolver mas quando muito em extrair... ainda quero extrair a seiva da maresia quando dejuvenescer de vez...pois quem se entrega as ondas do mar, carrega um duplo sinal, a alma
imersa na água, a pele repleta de sal.
Quero ainda fazer livros, músicas e imagens usando o surfe eternamente de musa. Já disse antes: as ondas são minhas alter águas.
Em terceiro lugar não tem terceiro.



P - Afinal, deseja que suas cinzas sejam salpicadas em Piedade ou Ipanema ?

Boa pergunta, apesar de precoce... em Candeias definitivamente... e que seja em frente ao antigo Bar Sucata.
Acho que esta sua pergunta responde bem melhor sua pergunta anterior do que tudo que escrevi acima...

P - Depois de mais de 100 anos correndo atrás, finalmente arrumaste um mecenas, Alfio, o único empresário que merece o título, lhe ajudou a lançar seu novo livro "Concepção de frases em ninhos de água". Vêm mais coisa por aí ?

O Álfio foi muito bacana comigo no lançamento de meu livro. Deu todo apoio que tava ao seu alcance e ainda indicou um amigo que também me ajudou (o Tucano)... o nome disso na cartilha mercadológica é Apoio Cultural; o nome disso no léxico e no mundo poético é generosidade. Estou muito grato aos dois e espero que possamos desenvolver outras coisas em outras praias.Em breve vamos fazer "fabuloso destino de Fabinho Gouveia", um vídeo do tamanho do maior surfista brasileiro de todos os tempos. O vídeo vai ter mais ou menos um metro e meio mas o Plínio Ribas pode achar que tem mais de
10 pés.

P - Me explique como um sujeito pode "andar com o sol envidraçado nas costas" ?

Rapaz... um dia desses visitei a trabalho (estava fazendo um vídeo institucional para a Marinha) um local que se chama Ilha Fiscal... lá dentro tem uma capela... e lá na capela tem um vitral todo colorido com todas as texturas e os desdobramentos acrílicos que aquela obra oferece... penso que um surfista, carregando sua prancha, andando em direção ao Arpoador, a favor do sol e de mãos dadas com os seus raios, visto de costas... esse surfista é a capela, é o vitral e é ainda toda a paisagem que restou.

P - E "tubo é ninho de água" ?

nenhum outro elemento se enverga, se dobra, se círcula (atenção revisor... mantenha círcula proparoxítona... é mais errado e mais poético) nenhum outro elemento se aninha quanto água. Aquele derrame de vidraça que uma crista de onda oferece se transforma no mais gráfico de todos os ninhos. O surfista compreendeu esse abrigo com o corpo, que é o melhor órgão de
raciocínio humano. Ali ele (o surfista) é, ao mesmo tempo, acolhido e projetado. Eu só colhi a cena de olhos e depois botei uma palavra ao lado da outra. Acredito que poesia serve pra isso.

P - Voce ainda perde seu tempo lendo revistas de surfe como quando era moleque ou já não tem mais paciência ? se sobrou alguma, lê o que ?

Rapaz... muita coisa mudou desde que eu tinha 16 anos. Lembro que naquela época eu tava aprendendo a falar inglês no Brasas e devorava todas as revistas (Visual Esportivo, Surfing e Surfer), eu lia tudo e chegava até a decorar certas coisas...pregava posters nas paredes do quarto e o escambau... trocava muita idéia sobre os artigos com o Rodrigo Osborne e com o Roberto Nunes... hoje em dia ainda gosto de ler alguns artigos da Surf Portugal, do Surfer Journal e da Surfer... as vezes leio as colunas do Bocão e/ou do Fred na Fluir... mas não faço muito esforço pra ir buscar as informações... ainda curto sair a noite, de madrugada, com a minha namorada, e ficar fuçando as revistas nas bancas especializadas... sempre
consigo extrair alguma frase bonita, uma legenda poética, uma foto marcante. Mesmo com 36 anos, afastado do buchicho todo, ainda tenho curiosidade e interesse pelas revistas de surfe mas não tenho mais aquela fissura do moleque de 16 anos.

P - Amizade, pra terminar: sente mais falta do quê, daquela vidinha exclusiva de surfista ?

Essa pergunta é maldade... faz a gente remexer com um pedacinho de arame nas nossa memórias fósseis... sinto falta de praticar todas as deliciosas irresponsabilidades que a vida de surfista permitia: pegar onda o dia inteiro, 2 ou 3 caídas sentindo a prancha cada vez mais no pé, comentar a caída com os amigos de competição, fazer a mala de um adversário temido e competitivo, reclamar de uma derrota injusta e ganhar o apoio daquele admirável e invencível amigo , ser olhado
pelas meninas como um objeto de consumo, ter um qüiver de pranchas a disposição, comer pfs intermináveis e saber que nada vai mudar em seu corpinho de surfista, filmar e ser filmado e assistir tudo depois e ainda acreditar que existe pra onde evoluir, conhecer horizontes de tonalidades diferentes, se perder numa highway e depois se encontrar olhando um mapa
comprado em posto de gasolina, aprender palavras em línguas diferentes, conhecer bandas novas, completar uma manobra que parecia impossível, conhecer de perto o surfe e os sonhos da molecada up and coming... saber que no outro dia toda aquela vida ainda te pertence e que você ainda tem o tempo a seu favor.


P - Menti na pergunta anterior. agora é a última: e o resto ?

Cara... num tem do que reclamar não... sou um otimista brutal... por incrível que pareça agora que a vida tá ficando boa... insuportavelmente boa... surfe, poesia, filho, maturidade, família, namorada, tecnologia, linguagens revisitadas, literatura, vídeo, cinema... felicidade é uma escolha; liberdade é uma técnica.








3 comentários:

  1. Anônimo5:46 AM

    Para aqueles que reclamam que estao ficando velho,...

    "... por incrível que pareça agora que a vida tá ficando boa... insuportavelmente boa... "

    Viva Pepe !!!!!!!!
    dioliva

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  2. delicioso...fiquei quase sem palavras mas tinha de agradecer, acabei de ler com um sorriso gigante na cara e na alma : )

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  3. Anônimo7:44 PM

    Fiquei com saudades dos nossos 16 anos,as palavras do Pepê nôs fazem viver e reviver.
    Parabens Tio Maleco pela entrevista.
    abraço Lobo

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