terça-feira, outubro 19, 2004

A Febre

[Então calhou de dizer que o surfe em Portugal é mais atrasado do que o tupiniquim, pois não ?
Temos muito mais tempo dentro d'água, nossa indústria é gigantesca, mais de 15 brasileiros já passaram pelo WCT, 5 títulos mundias no WQS e sólida imprensa especializada (duas revistas mensais, outra no forno da Abril, pelo menos mais umas 4 ou 5 publicações eventuais).
No entanto, nossos irmãos portugueses vão fundo e me parecem mais sinceros quando tratam do assunto.
Esqueçam as piadas.
Cadilhe e Valente já frequentaram o blog, temperando essa Goiabada com geléia real, azul, transparente...
Agora, vos apresento Ricardo Bravo.
Fotógrafo de mão cheia, de tanto olhar os detalhes do surfe pelas suas lentes, assumiu tambem o dom da prosa para casar com suas imagens.
Mais uma grande contribuição que a Surf Portugal dá ao surfe - as mais belas fotos de 'line-up' que a Terrinha tanto merecia...
Um olhar distante, e íntimo, se possível fosse, das ondas solitárias da costa portuguesa.
Editor por ocasião da versão em português da revista Surf Europe, Ricardo Bravo passou de mero tradutor à cronista nato do que vê através das suas poderosas câmeras.
Tem honestidade para escrever o que realmente pensa, justo na revista que arrecada os maiores anunciantes de toda Europa
Senhoras e senhores, com prazer publico esse editorial que o Bravo gentilmente me mandou.]



Ricardo, Bravo de estar com tantos casacos (foto carinhosamente emprestada do surftotal.com)

A Febre

50, 100, 200 raparigas aprendem a fazer surf em meia dúzia de dias. Trezentos quilómetros mais a sul, uma média de 100 turistas por dia encaminham-se para as praias algarvias, sonhando com um surf que nunca vão fazer. Em todas as praias do país, carrinhas de escolas e surf camps buzinam por um lugar no areal, grupos de impossíveis futuros surfistas arrastam pranchas coloridas pela areia e todas as ondas do país serão em breve poucas para tanta gente sem rumo.

O hipermercado do surf está aberto. Nas 50 caixas impecavelmente alinhadas e matematicamente numeradas, aceitam-se cartões de débito e crédito, notas, moedas e consciências pesadas. Pelo tapete rolante sempre em movimento salta-se de cliente para cliente ao ritmo dos cifrões que o das marés é lento. Nas prateleiras iluminadas por 100.000 watts de luz artificial, a t-shirt Quik, Rip ou Billa parece diferente sendo igual e os calções de banho desadaptados aos corpos verdadeiros, encaixam na perfeição nos corpos dos semi-deuses vendidos em forma de cartaz de circo. Os seres terrestres resvalam para fora dos calções e arredondam fatos super elásticos cada vez mais confortáveis, cada vez mais quentes, cada vez mais caros, cada vez menos robustos, numa lógica feroz de usar e deitar fora.

Compra um carro e serás o próximo campeão, liga a nossa rádio e ouve o surf, inscreve-te no nossos cursos e vive a vida, compra o novo jogo para a tua consola e sente o surf sem saíres de casa, compra os ténis assinados pelo Taj e conquista a vizinha da frente, vê o novo DVD e regala os olhos com a ficção porque a realidade está muito feia, compra a nova revista e perde-te nas imagens e nos grafismos “muderninhos” (obrigado Júlio) porque as palavras só interessam para idolatrar ídolos com pés de barro, chega à praia às onze da manhã e sai às sete da tarde porque dormir até tarde e jantar no restaurante da moda já fazem parte do manual do surfista.

Nunca saias de casa sem a carteira. O surf está à venda e quem não quiser comprar não pode jogar. Não critiques, baixa a cabeça. Podes levantá-la bem alto se tiveres a cara tapada pelo último modelo de óculos que te protegem os olhos do sol mas não das luzes do hipermercado. Não uses os ténis do ano passado e muito menos penses que podes guardá-los para usar daqui a cinco anos quando voltarem a estar na moda (tudo volta). Tens de comprar novo e sem olhar a preços. Se é barato é mau, se é caro é bom. Esta é a lógica.

Apanha o avião para o outro lado do mundo e telefona aos amigos a dizer que estás nas Mentawais, mesmo que a tua praia de eleição seja a Caparica na Primavera já a escorregar para o Verão. Um surfista viaja e tu estás a viajar. Destino é o que está no guia de ondas, escolha é a dos pros e os dois estão à venda e são caros, logo bons.

O hipermercado do surf abriu as portas e sinto-me enjoado. Deve ser do balançar do barco.


Ricardo Bravo

2 comentários:

  1. Anônimo1:47 PM

    Ricardo Bravo é velho conhecido nosso, escreveu bons textos na lendária Brasilsurf, dos quais destaco "Teoria das Ondulações" e "Ondas artificiais"...
    Seu questionamento, é o nosso questionamento:

    Nós que lutamos tanto pela difusão crescente do surf, agora vemos ele se tornar vulgar e etiquetado, como qualquer produto da (dú)vida moderna...

    O surf tá na boca (e no corpo) de qualquer um, mas não ocupa tantos corações e cérebros...

    É isso mesmo Bravo, era impossível "a massa" não descobrir o surf (a gente ajudou...), se apaixonar pelo "felling", e consequentemente, manda-lo pras prateleiras ...

    Dentro desse quadro tão mercantilista, só nos resta garantir que os verdadeiros surfistas e empresários tenham o reconhecimento financeiro equivalente ao mercado que alavancam, e que a mídia seja clara, técnica, especializada, isenta e feita por quem vive surf, e não só vive do surf!

    Parabéns pelo texto RB, e parabéns Goiabada, por estar importando textos relevantes, em tempos de tanto pastelão!!!

    Roger "el corredor" Banno

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  2. Anônimo4:44 PM

    Alertado pelo ilústre editor dessa ficha corrida de surf, venho me retratar ao Sr. Ricardo Bravo, Fotógrafo, irmão lusitano, e autor desse belo texto, confundido por mim (no comentário anterior), com Ricardo Bravo, brasileiro, autor de diversos textos na lendária Brasilsurf....

    Roger Banno

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