Normalmente espero pelo menos dois meses para publicar aqui no Goiabada algo que foi publicado nas revistas que colaboro.
Desta vez, por motivo obvio, escolhi mandar brasa e dividir com voces reflexões do dia 11 de Outubro, antes portanto da etapa portuguesa do circuito.
[Sopa de Tamanco - Revista Hardcore # 242 - 11/2009 e Tempestade em copo d'agua>Revista Surf Portugal # 202>JNovembro 2009]
Não tenho hábito de fazer isso, desta vez acho quase indispensável descrever de onde escrevo.
Tem muitas moscas, tantas que não consigo conta-las, vem da rua ali embaixo cheia de bosta de vaca e cabras, os sinos badalam anunciando que mais vacas e cabras passam e despejam nas pedras sua rotina de tempos que ninguem mais quer lembrar.
É uma aldeia pra lá de Vizeu onde nasceram os pais do meu sogro.
Esse não será um texto romantico e babado - as moscas não deixam.
Trouxe um livro do João Saldanha pra ler, chama-se O Trauma da Bola (Cosac & Naify, Rio de Janeiro, 2002) e trata dum assunto que cada vez mais parece ganhar corpo pros apaixonados pelo futebol, a derrota do selecionado brasileiro pro italiano na Copa do mundo de 1982, 3 x 2.
Bastava um empate e seríamos tetra-campeões.
O futebol jogado por aquele time era uma coisa fora do comum, quem gostava de futebol torcia pro Brasil avançar só para poder ver Zico, Falcão, Sócrates, Junior, Leandro, der, Cerezo e cia jogarem novamente.
Cada jogo era uma aula.
Saldanha era macaco velho, sabia tudo de futebol e um pouco de tudo.
Aprendi com ele a olhar o jogo com outros olhos, seus comentários no radinho de pilha durante e depois dos jogos tinham a urgência dum sermão de missa dominical.
Malditas moscas.
Acho pouco provável que alguem no circuito mundial de surfe tenha ouvido falar do João Saldanha. Dois ou tres australianos conhecem Derek Hynd de nome. Hynd escreveu sobre a ASP e seus ídolos como ninguem. Suas cronicas sobre a perna europeia, o Grand slam australiano e as temporadas havaianas nos colocava numa redoma de resina e lançava no centro nervoso do tour.
Duma hora pra outra, o texto do Derek Hynd te pegava pelo colarinho e voce quase apartava um pau entre Pottz e Gerlach depois duma bateria no Japão, noutra voce VIA Curren surfando sozinho numa praia impossível de varar com mais de 15 pés de rebentação para espanto dum jovem Slater, se voce piscasse podia se encontrar numa mesa de bilhar com dois campeões mundiais completamente bebados apostando a premiação toda dum evento numa tacada.
Hynd era o Saldanha da reportagem de surfe.
Assim como Saldanha, Hynd conhecia o negócio por dentro. Campeão australiano junior, caçula do poderoso esquadrão do Terry Fitzgerald, era sexto do mundo quando em plena bateria na perna sul-africana levou uma pranchada no rosto e perdeu quase toda a visão do olho esquerdo - apesar disso continuou competindo e ainda avançou!
Suas resenhas sobre os top 30 (antes dos top 44) eram de arrepiar, saborosas pra quem estava fora, amargas pros de dentro, intragáveis aos poucos sem censo de humor.
Temos hoje um certo Lewis Samuels, algo gozado, bem informado, atento e prolixo. Veio em boa hora, toda imprensa tinha ficado um pouco sisuda demais.
Sacudiu.
Hynd fugia do lugar-comum como o diabo da cruz, Lewis investe sem medo nos cliches, partindo pra dentro dos velhos (presente!) preconceitos como uma bóia salva-vidas - a turma do pescoço vermelho adora e brinda com a Intolerável Bud Light cada chavão.
Derek citava Dostoivesky, Lewis cita quem ele pode.
Basta de lenga-lenga.
Joel Parkinson é a seleção brasileira de 1982, sublime, poderosa, irresistível. Mick Fanning é a Itália do Paulo Rossi, precisa, mecânica, mortal.
Saldanha acusa que a equipe brasileira ganhou antes, não teve humildade nem disciplina para conter o empate que nos interessava.
Queria ganhar a todo custo, esqueceu de combinar com o adversário.
Todo mundo torce por Joel, sua linha é a mais bela, como os dribles curtos do Zico, seus cutbacks valem por arrancadas com a bola dominada do Leandro, poderíamos ficar aqui, eu e voce, fazendo analogias de como tal jogador tinha a maestria do Parko quando conduzia a pelota, não vale a pena.
Lewis Samuels escreveu que o surfe do Mick Fanning é tão empolgante quanto uma aula de aeróbica.
Fica claro na frase que Samuels tem dificuldades pra manobrar sua prancha e irrita-se quando ve Fanning fazer nenhum esforço para colocar sua prancha onde quer.
Fanning é um dos maiores surfistas de toda história, assim como Parko.
A diferença é que Mick parte para seu segundo título e Parko…bem é talvez cedo para dizer mas Adriano pode ter outros planos para o vice de 2002 e 2004.
Claro que Slater é capaz de tudo e na altura que esse texto for publicado pode ter feito das suas - Kelly não presta para previsões.
Saldanha dizia que o diabo é o quase, em outras palavras brincava com a maldita expectativa que mata tantos sonhos.
Como quando nos preparamos dois dias antes acompanhando as previsões em mais de 300 sitios da internet, roupa de borracha, parafina, duas pranchas, alongamento.
No fatidico dia dirigimos por todas possibilidades de perfeição, pra cima e pra baixo, apenas para descobrir que o melhor lugar era logo ali, 45 minutos atrás, maré baixa.
Torço muito para que esse texto seja um grande equivoco, Parko seja mesmo um campeão nato prestes a despertar do sono profundo.
Quero comemorar seu título mas não creio.