sábado, setembro 16, 2006

Conto

[Zé cobrou que nunca mais publiquei daqueles contos sem pé nem cabeça que gostava tanto de escrever.
Fuçando, achei um, chamado 'Falta de fé' , de 99.
Sei que a demolidora maioria dentre a meia dúzia que frequenta isso aqui, caga e anda pro que foge das questões mais importantes da nossa vida ('CT e 'QS) mas era um exercício, por Tutatis!
Sabe lá se um dia me sorteiam na loteria do sucesso e viro grife, desses consultados para qualquer bobagem nos cadernos de (ui!) cultura ?]



Olhava pra todo mundo e desconfiava que ninguem ali era feliz, tudo fingimento.
Se recusava a aceitar o simples fato que existiam pessoas plenas de felicidade - inconcebível!, indignava-se.
Em eventos sociais ficava sempre num canto, observando maliciosamente convidados, moendo e remoendo sua amargura e completa falta de fé na natureza humana.
Os amigos o recebiam sempre bem, braços abertos para o abraço, gostavam de seus ácidos comentários sobre assuntos dos mais variados, situação política e econômica, futebol, culinária, literatura e seu prato predileto: cinema.
Tinha pouca paciência e detestava conhecer gente nova, ‘já conheço quem preciso’, limitava-se.
Lia de 3 a 4 jornais diários, desagradavelmente bem informado, assinava um leque de publicações que iam de Guns & ammo até, naturalmente, sua Bíblia, o Cahiers du cinema - para tal, auto-didata, lia e escrevia em mais de 8 línguas, falava mal umas 14.
Tinha horror a multidões.
Só assistia os filmes desacompanhado, frequentava as primeiras sessões, sempre escolhendo cuidadosamente os cinemas mais evitados pelos conhecidos.
Tinha arrepios toda vez que apagavam-se as luzes.
Não lhe escorria uma lágrima na sala escura desde o dia em que vira um especial sobre Garrincha no Canal 100.
A música, imagem em ‘close’ do joelho descambado, o adversário no chão olhos fixos na bola, inutilmente, lhe comoveram profundamente. Percebeu ali que não tinha mais chances nenhuma de testemunhar genialidade.
Boa parte de seu entusiasmo pelo cinema vinha da preliminar, resultados dos jogos, que cenas maravilhosas! A galera no Maraca, toda fantasiada, o crioulo na geral com duas presas sorrindo frouxo, a madame na tribuna perplexa, a pirâmide humana na comemoração do golaço de Zico na final em 78.
Aquilo sim era emoção. Quem vai acreditar naqueles malandros, cheios de caras e bocas, chorosos, interpretando falastrões na tela?
Artista era Zico, Junior, Toninho e Leandro.
Herói, só o Rondinelli, Deus da raça.
E vai engolir o Al Pacino de policial ? Depois dele fazer o Poderoso Chefão ?
Peralá…
Fechava com Paulo Francis, toda quinta no O Globo: igual ao Brando não tinha igual.
Mas na hora do aperto, ficava mesmo com Von Sidow, fã de Bergman, marido e mulher.
Quem lhe encontrava não perdia a oportunidade de testar seus conhecimentos- nem suas espetadas.
Sabia de cor os diálogos do “Terceiro Homem”, “Desencanto” e “Os Imperdoáveis”.
Decorava e voltimeia soltava uma frase tipo “this thing can’t last, this misery can’t last..”, só pra impressionar moça nova na turma.
Impressionava, mas durava pouco. Nem elas aguentavam tanto rancor nem ele suportava sua privacidade invadida.
Sonhava com família e filhos, e ficava por isso mesmo, no sonho.
Quando batia vontade forte de se ajeitar na vida social prudente, visitava uma loja de animais de estimação na Siqueira Campos e passava uns 15 minutos fazendo festa nos cãezinhos.
O dono já o conhecia e sabia que daquele mato não saía cachorro – nem um centavo – mas deixava o camarada se humanizar um pouco.
Pois não é que ele resolveu comprar um Labradorzinho que tascou-lhe uma lambida na fuça ?
Tirou a carteira do bolso, contou as notas, conferiu a quantia, pechinchou, como de hábito, e pagou.
Ainda levou a coleira de brinde, o dono da loja deu para garantir que o tipo esquisito não voltava na loja tão cedo.
Apelidou o cão de Mané, homenagem ao Manoel de pau-grande, Magé, Rio de Janeiro, fique claro.
Apressou-se em direção à praia, final do dia, queria aproveitar e caminhar com seu novo companheiro pela Avenida Atlântica enquanto havia luz do sol.
Quase sentiu uma pontinha de orgulho caminhando com Mané pelo calçadão.
Determinado momento, o cachorrinho abaixa as patas traseiras e começa uma tremenda cagada.
Ficou sem saber o que fazer.
Tantas vezes xingava calado os felasdaputa que deixavam os cães cagarem a praia e agora se via naquela situação desagradável.
Olhou pros lados envergonhado e mal percebeu que uma menina, muito bonitinha, dos seus 17, 18 aninhos, aproximava-se com uma cadelinha Poodle, dessas todas peladinhas, tosadas, feito um cotonete.
A cadelinha iniciou aquele ritual de sedução que nada difere dos bípedes e logo Mané tinha seu fucinho enterrado no rabo da bicha.
Uma situação daquelas exigia uma saída urgente e rapidíssima, antes que que Mané cumprisse seu destino.
A menina, maravilhada com o cãozinho, “que fofura!”, nem percebia o constrangimento do dono, arrependidíssimo de sua nova aventura.
Olhou para as pernas da moça, sainha curta, batata bem torneada, sabem como é…bum-bumzinho saliente, a calcinha marcada na malha fina da saia…
Puxou Mané com decisão, virou bruscamente e meteu o pé direito na merda.
Calçava sandálias Havaianas, pé preso no montinho artilheiro.
Sorriu de canto, deu de ombros, lançou o outro pé longe, resolveu ficar descalço.
Soltou a coleira do Mané e saiu andando até a primeira barraca.
Pisou na areia, abriu a latinha de Skol, deu um longo e sentido gole.
Suspirou e sentou-se na beira d’água.
Uma espuma molhou-lhe os pés sujos de merda.
- Tenho que assistir um filme dos Trapalhões…
E tomou mais um gole.