quinta-feira, dezembro 08, 2005

Free ride

[Texto da SP de Novembro - complemento ao artigo sobre Tubos do Valente]



Aquela melodia insistia em repetir-se. Desde a primeira vez que ele vira e escutara Shaun Tomson a passear-se à frente da lente de Dan Merkel, nunca mais se conseguira livrar do pianinho suave dos Pablo Cruise.
Aliás, começara tudo muito antes: uma revista sem capa, a sequência de fotos de Shaun e MR dentro do mesmo tubo em Off-the-Wall como aperitivo, o leitor de cassetes tocando uma fita mal gravada de “El Verano”, apertada entre “Song of the Wind” do álbum Caravanserai, um dos mais sublimes momentos de Santana, e uma canção qualquer do Neil Young – mesmo que se vinda de Young nenhuma canção seja uma canção qualquer. Tinha de tudo naquela gravação rasca: Gallagher & Lyle e Joan Armatrading, Santana e Robin Trower… era o que se chamava de surf music no mais puro e verdadeiro sentido. Não aquela da definição das enciclopédias de música pop mas as músicas que de facto ouvíamos antes de irmos para dentro de água.

Túnel do Tempo 1: Final dos anos 70. Um surfista mediano, chamado Larry Blair, vence todos campeonatos disputados em ondas tubulares. Blair surfa o que dizem ser o mais longo tubo da história da ASP (9 segundos) contra Wayne Lynch na final do Coke de 1978. No mesmo ano, surpreende o mundo vencendo o Pipe Masters e ainda repete a dose em 79, provando que não era um acaso dos canudos.

Quando viu a plaquinha caindo lá de cima e escorrendo na sua frente – “O vidro veio envergando com um derrame afiado e pontudo”, escreve Pepê Cezar – quando a onda fechou e deixou o dia escuro, ele ouviu novamente o danado do pianinho e viu o contorno da mão do Shaun Tomson a passar perto do seu rosto.
A turma dos mais velhos, do alto daqueles anos bem vividos que separam um moleque de 15 do homem de 18, pregava que o “Free Ride” tinha uma banda sonora que parecia ter sido feita sob encomenda. Outra teoria, esta da responsabilidade dos caras de 22, dizia que os californianos de São Francisco, Pablo Cruise, tinham assistido o filme já editado e composto tudo na hora. Uma versão de bermudas e pele bronzeada da lendária jam session de Miles Davis para “Ascensor para o Cadafalso”, filme de Louis Malle de 1958 cuja banda sonora, segundo testemunhas, foi toda improvisada em apenas quatro horas de exibição da cópia.
O pianinho vinha em horas totalmente inusitadas: um alarme interno, um vício, uma doença, três acordes que eram suficientes para o delírio absoluto.

Túnel do Tempo 2 – G-Land, WCT, 1995. Surfista aposentado, Jim Banks dropa a mais ridícula onda de toda temporada e percorre-a por tanto tempo quanto possível, sempre dentro da caverna. Slater afirma que é o melhor tubo que alguma vez já viu. Banksy sai da longa galeria aquática com os dois pés a menos de 30 cm do bico da prancha, numa fenomenal demonstração de equilíbrio e balanceamento. Hippie por vocação, Jim inscrevera seu nome na história da ilha de Bali ao conquistar, em 1981, a sua única vitória na ASP, no primeiro campeonato profissional realizado em Uluwatu. E foi amante quase exclusivo de Desert Point por quase dez anos sem que ninguém desconfiasse de onde lhe vinha o olhar esgazeado.

Ele leu Timothy Leary e descobriu que as pessoas que tinham experimentado LSD passaram por situações muito semelhantes à sua. Baptizaram o fenómeno de “flashback”, uma experiência quase extra-sensorial onde a loucura induzida pela droga regressava subitamente por fracções de segundo dias, semanas, até meses depois da “viagem”, sem aviso prévio, sem rastro. O pianinho…
Seus ouvidos transformaram-se numa antena cósmica de comunicação com um pedaço do tempo que ficara registado num filme de surfe (quem escreveu isso ?). Entrava no mar e quando avistava a primeira onda rodando, lá estava o pianinho, como que a atrai-lo para dentro dela, subtilmente dizendo: “bota p’ra dentro, bota p’ra dentro…” Como se o próprio mar fosse a sereia e o ruído do lip contra a base o seu canto hipnótico. Queria crer que um dia o pianinho sumiria.
Assistia o Curren nos filmes e vinha o pianinho. Slater, Occy, Andy, Carroll, Machado, Dorian e sempre o pianinho, permeando cada momento dos tubos. Diga-se de passagem, o pianinho só surgia quando a atmosfera era de tubo. Podia ser uma árvore com galhos caídos, uma tubulação em construção na calçada, um retrovisor de automóvel, um canto de tapete enrolado…

Túnel do tempo 3 – Nunca houve surfista como Valdir Vargas. Durante quase uma década, aqui no Brasil existia apenas uma pessoa que rimava com tubos. Valdir foi competir em Pipeline, Brian Buckley marcou-o com toda desonestidade possível depois dos jornais havaianos apontarem o jovem brasileiro como favorito ao troféu do Pipe Masters. Alguns anos depois, Vargas recebeu uma carta do seu amigo, Dane Kealoha. Dizia: “Caro amigo, hoje vinguei a tua bateria em Pipe. Fechei o filho-da-puta do Brian Buckley. Ele ficou fodido! Trocámos socos. Eu ganhei, ele perdeu.”

Incrível como uma música pode grudar de tal forma na vida dum sujeito.
Ele nunca mais foi o mesmo…

Referências

Pablo Cruise: Banda de rock californiana dos anos 70 com um som à base de longos solos de guitarra e piano, que teve três canções na banda sonora de Free Ride: “Ocean Breeze”, “Zero to Sixty in Five” e “El Verano”. Hoje em dia é relativamente fácil encontrar a colectânea “20th Century Masters - The Millennium Collection: The Best Of Pablo Cruise (Interscope – 2001)

Free Ride: Filme de Bill Delaney que marcou um dos períodos mais importantes da história do surf, os Invernos de 75/76 e 76/77 no Hawaii, mostrando a ascensão de nomes como Wayne Bartholomew, Shaun Tomson, Mark Richards e outros no cenário internacional. A fotografia então revolucionária de Dan Markel permitiu mostrar o interior dos tubos como nunca se tinha visto antes. A banda sonora é ainda considerada por muita gente como a melhor de sempre na história dos filmes de surf. Aguarda-se a edição em dvd mas procurando bem ainda se encontram cópias.

Timothy Leary: Psiquiatra americano que nos anos 60 defendeu a utilização do alucinogéneo LSD para fins terapêuticos que visavam a expansão da mente para além dos rígidos códigos da realidade aparente. Leary via o surfista como estando um degrau acima na escala da evolução humana em virtude de desenvolver uma consciência profunda do aqui-e-agora no momento em que se encontra dentro do tubo.



Por que diabos o saite Uêivis insiste em dizer que Brian Buckley é Rory Russell (se bem que na revista, edição de aniversário, Janeiro de 1979, diz que é Jeff Crawford, mas pela prancha, eu duvido) ? Onde estava essa turma quando Jackie Dunn e Brian Buckley dominavam Pipe durante o outono do Lopez e Russell no final dos anos 70 ?
Tantas perguntas e tão poucas respostas...

4 comentários:

  1. Anônimo6:38 PM

    se ptocurar nessas lojas que vendem posters etc, nos grandes shoppong e alguns bairros., se encontra este magnífico posters...

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  2. Anônimo10:17 PM

    Há um surfista como Valdir Vargas,o nome dele : Bruno Santos

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  3. Anônimo8:39 AM

    como o valdir vargas ninguém será e igual ao bruno nunca existirá um parecido....similaridades talve apenas no faro para os tubos....o 1º é e foi pura elegância...

    arduíno

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  4. Anônimo11:15 AM

    Julio que diabo de magia é esta que existe no surf? A mente Sempre viajando entre pipe marters (Pepe, Valdir Michael ho de braço quebrado) dias clássicos (aquele tubo alucinante no baixo) Free ride, fluid drive, Salt water wine a fumaça invadindo aquelas salas de projeção improvisadas e as imagens invadindo o seu cérebro, não tem jeito você é surf pelo resto da vida.
    Ai é inevitável Raoni e Yuri Sodré arrepiando, Bruno Santos em pipeline, parece que o garoto nasceu para ser Pipemaster! O túnel se abre e o tempo voa meu amigo.
    Abraço.

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