[texto para a Surf Portugal apresentando Tinguinha, que meteu a viola no saco e se mandou pra Terrinha.]
Shaun Munro e Todd Miller me cercavam. A correnteza era forte correndo para o sul da praia da Barra da Tijuca, fazendo da remada um martírio, como sempre acontecia naquelas malditas valas, fundo e raso, água escoando feito um ralo aberto – baterias de 20 minutos, triagem, Alternativa Pro no Rio de janeiro, 24 de Outubro de 1991.
O momento da verdade tinha chegado para mim. Já tinha visto todo mundo da minha geração passar pela triagem e minha vez não chegava nunca. Duvidava todos os dias se realmente existia uma chance para um sujeito tão cheio de deficiências e limitado como eu.
Fabinho e Teco já tinham fincado a bandeira brasileira nos pódios da ASP mundo afora, atropelando a nova geração de Aussies e Yankees, triagem por triagem, varrendo Egans, Hoys, Knoxs e Beschens como quem esconde a poeira embaixo do tapete.
Os brasileiros tinham chegado.
O título mundial amador de Gouvêia em 88 tinha aberto novas possibilidades para nossos índios mostrarem que não ficariam satisfeitos apenas com apitos.
Da volta do circuito mundial para o Brasil em 86 com o Hang Loose da Joaquina até aquele 91, tínhamos subido tantos degraus na escadinha da ASP que não éramos mais uma ameaça, éramos, sim, um fato consumado.
Do isolado quinto lugar do Sérgio Noronha até a vitória do Fabinho- sempre ele! - no Hang Loose do Guarujá em 90, a presença maciça dos brasileiros em todos eventos do circuito mundial tornara-se mais do que incômoda e era refutada pelos habitués da tour como uma peste, uma praga.
E como praga, merecia ser combatida.
Se união havia entre americanos e australianos, inimigos mortais desde que o australiano Midget Farrely venceu o primeiro mundial de surfe em 1964, em cima do Mike Doyle e Joey Cabel na frente de 70.000 torcedores, dizia eu, se união fosse uma possibilidade em meados dos anos 90, impensável nos 60, 70 e 80, essa estranha e improvável aliança teria um objetivo apenas: impedir essa corja de brasileiros que entravam com os dois pés na porta da ASP.
Antes disso, uma marcação ou outra era apenas individual, como fizeram com Valdir Vargas no Pipe Masters de 82, Brian Buckley e outro havaiano, amendrotados com a facilidade impressionante do carioca em apanhar tubos.
Não creiam que uniam-se todos surfistas que dividiam o idioma inglês para estudar estratégias contra o terceiro mundo, nada disso.
A coisa era intuitiva.
O princípio, idêntico ao localismo, dava-se da seguinte forma: estamos aqui nessa batalha faz muito mais tempo do que eles, não vamos entregar os pontos assim tão fácil- para tomarem nossos lugares, tão suados, vão ter que rebolar esses latinos.
E como os latinos sabiam rebolar!
Tinguinha Lima era dos que melhor gingava em cima da prancha. Apareceu em 78, criolinho mirrado, de prancha velha e manobras novas num campeonato no Guarujá, lépido e fagueiro - 3 anos de surfe e já ficava em quinto lugar.
Campeão brasileiro profissional em 90, repetiu a dose em 93, com 29 anos, e ainda entrou no WCT, infelizmente com 10 anos de atraso. Tinga, como é carinhosamente conhecido, surfou muito á frente do seu tempo, inventando manobras que seriam conhecidas apenas 15 anos mais tarde, como o ‘cut-tinga’ que ficaria conhecido como ‘reverse’ quando um garoto magrelo da Flórida apresentou ao mundo o truque no vídeo Kelly Slater’s Black and White.
Seguindo com o primeiro parágrafo, encontrava-me encurralado pelos dois gringos. Precisava de uma nota alta, um 7 e alguma coisa, a corrente era implacável e não nos deixava parar de remar nem um segundo sequer.
Shaun Munro estava em segundo, este que vos escreve em terceiro, Tinguinha em quarto, Todd Miller liderava fácil, com duas esquerdas bem manobradas acima de 7.
Munro guardava o pico na parte de dentro e Todd Miller acabava com qualquer chance d’eu surfar me empurrando pra dentro do banco de areia, onde as ondas fechavam completamente.
A intenção deles era manter-me ocupado e preocupado suficiente para, quando viesse uma das poucas séries, protegerem suas colocações.
Tinga não se achava.
Faltando pouco mais de cinco minutos, Nuno Jonet anunciava a situação da bateria com Tinguinha em último e eu em terceiro, os brasileiros mais uma vez sendo derrotados, como foram tantas vezes, em casa.
A praia cheia se ressentia da derrota anunciada.
Tinga voltava de mais uma onda medíocre, mirou meus dois marcadores e soltou: ‘Fica tranquilo Marreco (meu apelido…), porque esses gringos filosdaputa não vão mais pegar onda!’.
‘Calma Tinga, vamos passar nós dois. Ainda há tempo…’ disse eu tentando dissuadí-lo da louca empreitada, com uma ponta de esperança patriótica.
Nosso herói arremessou-se como um kamikaze ao encontro dos dois gringos e infernizou a vida deles como eles infernizavam a minha.
Série entrando…
Nós todos tão concentrados em não deixar um ao outro surfar aquelas preciosas ondas e o Tinga firme no intuito de permitir que pelo menos um de nós, brasileiros, dignificassem a torcida na areia.
Bloqueando Munro e Miller, Tinga me presenteou com a melhor onda da bateria.
Do palanque, Nuno assistia atento e torcia em silêncio pelos patrícios, mas sua voz não escondia sua contentação:’ na última onda, Júlio Adler precisava de 7.5 e consegue um 8.17 e vira pra cima de Shaun Munro que agora precisa de 7… on the last wave…’.
Foi a única vez que consegui passar a triagem no campeonato do Rio, perdi em seguida para o Vetea David no homem X homem numa bateria ridícula em ondas ridículas, que naturalmente me favoreciam contra um pesadíssimo David.
A atitude do Tinga nunca me abandonou. Tentei repetí-la em outras oportunidades, nem sempre com sucesso, abnegado.
Se o surfe e a competição servem para revelar o verdadeiro caráter das pessoas, eu lhes apresento, com muito orgulho, Tinguinha Lima.
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