segunda-feira, março 14, 2005

O grande equivoco

[Coluna Tempestade em copo d'água, revista Surf Portugal, setembro 2004]

Era inverno de 2001, frio intenso, maior do que pensava ser capaz de suportar com bom-humor. Estava em Lisboa, Valente tinha acabado de receber o DVD do novo produto da turma ‘Poor Specimen/Moonshine Conspiracy, chamava-se ‘Shelter’ e sua produção foi cercada de grande alarde por parte da deslumbradérrima imprensa especializada americana.
Meses antes o saite surfline.com saiu na frente, como sempre fazia, com um interessante artigo indicando que encontrava-se em produção na Austrália um filme inspirado no clássico ‘Morning of the earth’ (1973, Aust. Alby Falzon) dirigido mezzo Chris Malloy, mezzo Taylor Steele.
Desconfiei.
Por que diabos um sujeito, Taylor Steele, que insistia em reproduzir infinitamente sua fórmula – desgastada, na minha opinião- por quase uma década, o que levaria esse camarada, repito eu, a investir numa empreitada tão distante do que seus vídeos sempre pregaram ?
E Chris Malloy ? Mais uma vez acintosamente oportunista.
Onde estava o filme do Falzon quando foram perguntados pelas suas influências, Steele e Malloy ?
Seria mais honesto homenagear Chris Brystron, esse um enorme injustiçado pelo rolo comprensor da imprensa especializada, mas sempre lembrado por Taylor Steele quando declarando suas origens.
Uma velha casa em Byron Bay, meia dúzia de amigos de ocasião, convidados ilustres, belas tomadas em cinema 16 mm, trilha caipira pop e o selo vencedor – e vendedor!- da Moonshine Conspiracy/Poor Specimen, voila! Temos um sucesso de crítica e público.
Nem vamos entrar nos méritos do tom de lamento dos depoimentos do filme, que é o que ele tem de mais constrangedor, com Dorian filosofando sobre o valor de sua vida, Harper choramingando como sempre faz sobre paz na terra, etc…
Deixemos isso pra lá.
Uma das coisas que mais me intriga nessa obra é um breve trecho onde a turma de ilustres cantarola ‘Stay Young’ (Benny Gallagher, Graham Lyle, 1976) da dupla escocesa Gallagher & Lyle que figura num outro grande clássico dos anos 70, ‘Free ride’ (Bill Delaney, 1977).
Por que o susto, pergunta o leitor mais atento ?
Afinal, aquela é uma canção que traduz todo sentimento que envolve ‘Shelter’, com sua letra dizendo: ‘Quando alguem precisar de voce, dê tudo que puder, quando voce vive para amar, voce ama viver’, não é verdade ?
No entanto, e aqui entra o espírito crítico com que fui amaldiçoado, o hino do filme ‘Morning of the earth’ é ‘Simple Ben’ (John J. Francis, 72), uma das músiquinhas mais executadas da história da indústria fonográfica australiana.
Temos alguma coisa fora de contexto.
Free ride foi o filme que apresentou ao mundo um caráter mais agressivo do então romântico ato de correr ondas.
Circuito mundial, aussies contra sul-africanos e havaianos, uma nova ordem no surfe mundial: profissionalismo.
Shaun Tomson e Mark Richards, duas quilhas versus monoquilha, anunciavam mudanças, dentro d’água em níveis jamais alcançados até a época e fora, comportamento, atitude: Rabbit e P.T.
Existia tensão em cada batucada no piano do Pablo Cruise na inesquecível trilha do Free ride.
A definição para ‘Morning of the earth’ seria bucólico.
Pranchas eram esculpidas ao sabor do vento que vinha do mar. Legumes e verduras degustados como se fossem…legumes e verduras!
Não havia uma única palavra nos 79 minutos do filme.
A mensagem era de esperança num mundo melhor, segundo confesou Falzon na série 50 anos de filmes de surfe do ‘Surfers Journal’.
A vida simples, sem complicações, ‘Simple Ben’ tinha sido ‘batizado pelo jeito como pensava e não pelo que vivia’.
Falta sutileza no ‘Shelter’ para dizer sem ter que falar, como no filme que os inspirou.
Quando cantam em coro que as ‘melhores coisas da vida são de graça’, trecho de ‘Stay young’, o filme (Shelter) tenta comunicar o óbvio e derrapa numa curva de pretensão – a geração ‘Free ride’ estava em outra, Rabbit balançava num brinquedo treinando para o circuito I.P.S..
Fosse mais livre, sem tantos recados, sem tanta vontade de prestar contas com o passado, ‘Shelter’ talvez fosse um grande filme.
Melhor seria ouvir atentamente às sábias recomendações do ‘Simple Ben’: ‘Temos que nos encontrar novamente e passar mais tempo juntos, compartilhando um chá. Se voce ouvir de novo essa musica quando estiver andando por aí, voce saberá quem é…’
Do lado de cá, se ouvir o som de ‘Shelter’, não terei dúvida: não há de ser ninguem.

2 comentários:

  1. Anônimo1:53 PM

    Júlio, não sou nenhum fanático por este filme, mas não o acho assim tão mau. É pretencioso? É. E surfar, não o é?
    um abraço

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