quinta-feira, julho 29, 2004

Cadilhe

‘Prefiro ir à deriva
Me deixe que eu siga
Em qualquer direção
Se eu sou de um rio marinho
O mar é meu ninho
Meu leito e meu chão’

Mar grande
(Paulinho da Viola e Sérgio Natureza)


Gonçalo esteve aqui


[Resolvemos tudo num breve telefonema: estarei em Pipeline, na areia naturalmente, filmando com uma pequena câmera. Sempre imaginei um Gonçalo de barba mal-feita, com roupas surradas pelo tempo demasiado exposto ao sol e aos sete mares.
Me aparece um sujeito de aparência limpa: barbeado, camisa pra dentro da calça (comprida!), fisionomia de uma serenidade irritante.
Cadilhe ?
Júlio?…
Prazer, rapaz, sente aí, foi bom mesmo ter ligado.
Quem armou tudo foi o Valente, o camarada que nos deu o prazer e o privilégio (com a permissão do Morrisey) de ler Gonçalo Cadilhe todos meses numa revista de surfe escrita em português.
Quem foi que disse, ‘o idioma é minha pátria’ ?
Ondas de mais de 3 metros rebentavam violentamente na bancada, a conversa ia e voltava, como os locais lá for a, mas havia respeito ali naquele pedacinho de praia, nos dois ou tres metros de areia que ocupávamos debaixo dum coqueiro pra abrigar da chuva, eu, Cadilhe, Bertiez e o Zé (acredito ter lembrado dos nomes…).
Por que não escreve um livro ? perguntei curioso.
Não há mais nada a escrever. Tudo já foi dito. Retrucou Gonçalo.
Discordei em silêncio e sugeri uma coletânea dos textos da SP.
Num tempo onde Jamie Brisick é considerado flor da literatura do surfe, Gonçalo é marginal por opção.
Marginal por andar na margem, de pés molhados.
Suas crônicas anunciam tudo menos o óbvio- embora sempre falem da mesma coisa.
Escolhi Paulinho da Viola para introdução do texto que tinha aqui guardadinho.
Imagino o Gonçalo batucando na mesa, ouvindo o ‘Da Viola’ cantando num boteco aqui do Rio de Janeiro.
Ninguem canta com a elegância e a cadência do Paulinho da Viola.
Gonçalo tem o dom de escrever assim, com essa cadência, com esse charme.]



Puta Vida (ou Tamarindo Blues)


Há uma frase famosa num filme de Orson Welles, creio que “O Terceiro Homem”, em que a Suíça é comparada à Itália. A ideia é mais ou menos esta: “Em 500 anos, a Itália deu ao mundo Miguel Ângelo e Leonardo da Vinci, o sistema cambial, o telescópio, a ópera, o barroco, a rádio de Marconi, a Sofia Loren, etc… (o exemplo da Sofia Loren é meu); e a Suíça, no mesmo período de tempo, o que deu ao mundo? O relógio de cuco.”
Chamam à Costa Rica a Suíça dos trópicos. Bom, há razões para essa comparação: a Costa Rica não tem exército, tem montanhas, vive em democracia e vive do turismo, é aparentemente neutral (como o é, aparentemente, a Suíça), tem a taxa de analfabetismo mais baixa da região, as diferenças sociais menos chocantes e, em relação aos restantes países da América Central, é um país próspero que atrai emigrantes de todo o continente. A Costa Rica é simpática, é agradável, é segura, tem boas ondas, água quente, está bem organizada nas infra-estruturas, hotéis, restaurantes. Os turistas adoram. Eu não gostei. Não gostei da sensação que tinha chegado a dois países paralelos que se ignoravam mutuamente: o dos “ticos”, os homens e mulheres de pele escura e face descontraída que vivem a sua vida pacata nas cidades do interior, nos ranchos humildes, nas colinas onde se cultiva o café, a banana, a cana do açúcar. E, depois, o país dos parques naturais, das praias e lagoas, dos resorts e dos bungallows, dos veículos alugados, dos bares happy-hour onde se bebem dois cocktails e só se paga um _ o país dos turistas.
Eu não consegui passar do país dos turistas para o país real: encontrei as portas de acesso hermeticamente fechadas. Era como se o comportamento de milhares de “gringos” que tinham passado por ali antes de mim tivesse saturado a paciência e a boa-vontade dos “ticos”, que agora não faziam distinções entre viajantes ou turistas, paparucos ou surfistas, portugueses ou japoneses, europeus ou americanos, nada. Só relações de “business” ligavam os dois países paralelos. Só a compra e venda de almas punham em contacto as duas comunidades humanas.
Entrei na Costa Rica depois de várias semanas no México, Guatemala, El Salvador e Nicarágua. O choque cultural não podia ter sido pior. Comecei por Tamarindo. O começo não podia ter sido pior.
“Mea Colpa”, é verdade. Já à partida era previsível que eu ia sentir-me como um peixe fora de água em Tamarindo. O que tinham em comum a minha viagem à volta do mundo; e este clube de férias organizado a partir de Miami? O que tinha a minha procura de beleza e harmonia a ver com este paraíso de pacotilha? Onde encaixava a minha sensibilidade nesta massa americanos do Mississipi, de canadianos dos Grandes Lagos e de alemães da Baviera? O que me ligava a Tamarindo? O surf? Surf é um conjunto de atmosferas flutuantes que precisam de acontecer todas ao mesmo tempo. Ondulação boa, vento fraco, fundos certos, naturalmente; mas também uma paisagem intacta, um estilo bonito, uma maturidade no comportamento do crowd, uma vibração comum na água, uma partilha de emoções. Um “feeling”... Que feeling podíamos partilhar, eu e esta moda de pegar onda que descarrega de voos “charter” centenas de curiosos nas praias de Tamarindo?
O surf em Tamarindo é um business como qualquer outro: trekking, rafting, equitação, bungee-jumping, piercing, tatuagens, cerveja, marijuana, ecstasy, all-night party... O surf é uma dessas coisas que não fazes na tua casa, na tua pequena cidade calvinista, republicana, patriótica do Midwest, onde todos te conhecem e te consideram “a good local boy”. O surf não tem a ver com o mar, tem a ver com qualquer anúncio de cerveja que viste na tua televisão, ou qualquer campeonato havaiano que apanhaste em directo no satélite e que te levou a pensar: “yeah, nas próximas férias já sei o que é que me apetece fazer”.
Porquê aqui, em Tamarindo, Costa Rica, e não em Poneloya, Nicarágua, ou em Sunzal, El Salvador? Porque Tamarindo é um nome exótico? Ou porque a tua nação deixou esses países, a Nicarágua e El Salvador, à beira dum colapso, quando eles _ a revolução sandinista, a Frente de Libertação Farabundo Martí _ tentaram libertar-se do “sonho americano? Esses países não têm Tamarindos. Não têm excursões a Roca Bruja, nem “day tours” ao Ollie’s Point, nem “shuttle bus” para Malpaís, muito menos “surf lessons” com professor credenciado, ou sequer “special surfer’s breakfast” com ovos e toucinho, coca-cola e ketchup. Esses países não têm nada disso, é como se não tivessem surf. Têm miséria e desespero, têm uma falta de horizontes crónica, que lhes foi deixada por Reagan e amigos (os que lá estão agora no lugar dele), têm o castigo que merecem por ter faltado à obediência. Serviram de exemplo, à espera que Cuba também arreie.
A Costa Rica também serviu de exemplo, mas ao contrário: foi o país da América Latina que triunfou por ter seguido os valores americanos. Uma espécie de panda no zoológico, mantido em vida à custa de subsídios e doações americanas, enquanto o resto da espécie _ o resto da América Latina _ se vai extinguindo numa espiral de corrupção, nepotismo, neo-liberalismo, governos fantoches, poderes ocultos, eleições sem qualquer significado, amnistias escandalosas, violações dos direitos humanos contínuas e despudoradas, miséria e mais miséria. Têm razão os tour operators e a propaganda oficial quando comparam a Costa Rica a uma Suíça tropical. Mas, ao contrário da Suíça, a Costa Rica tem uma praia que se chama Tamarindo com night-life, cheap-life, high-life e muitas ondas. Tudo à tua disposição. Mas não à minha. Não tenho disposição para isso.
Não fazia qualquer sentido permanecer mais tempo ali. Não esperei sequer por um swell que me pusesse a surfar em Pavones. Apanhei o autocarro mais directo que encontrei para o Panamá, sem passar pela esquerda mais comprida do mundo. O problema em Pavones não é o comércio da alma, é a arrogância de certas almas. E esse problema ficará para contar na próxima vez que eu tiver que atravessar a Costa Rica. – GC

2 comentários:

  1. Anônimo10:21 PM

    júlio e cadilhe, tive a mesma sensação ao assistir hoje [na mostra da cultura americana de surfe] o filme step into liquid. algumas imagens são marcantes [cortez bank], mas o filme é uma tremenda manipulação de americano [o pai, bruce brown, deve ter ficado com vergonha de seu filho ou filha que fez esse filme]. a eles só importam eles. quando aparecem dizendo-se relacionar com outros povos é a coisa mais falsa do mundo, como o laird hamilton dizendo que o legal do surfe é esse relacionamento com outros povos. mentira dele, porque no filme os não-norte americanos simplesmente não tem voz [a não ser alguns australianos]. e quando rola uma interação é em situação meio absurda de um pai bobalhão que levou o filho pra surfar no vietnam em ondas minúsculas. os irmãos malloy aparecem na irlanda, mas não mostram nada da cultura local [avisa eles que a guiness, que eles citam, apesar de ser a melhor cerva preta do mundo, não é cultura]. ah, esqueço, eles participaram de um "inédito" encontro de iniciantes de surfe católicos e protestantes , mas duvido que isso seja verdade. e pra fechar ainda temos que aguentar inúmeras piadas sem graça de americano, esses idiotas que mandam mesmo no mundo, mas só no do dinheiro. nunca descobrirão os "outros mundos".
    como pode ser sério um filme que entrevista o lopez algumas vezes e não mostra a arte dele, justo ele?
    qual a mensagem desse filme? ou não era pra ter uma mensagem?
    o que fizeram com o espírito do endless summer I?
    mataram pra tentar vender que o império do bush é também o império do surfe.
    abraço, e viva a verdade, gonçalo e julio, zé augusto

    ResponderExcluir
  2. Anônimo5:38 PM

    I love your blog! I also have a site about wakeboard liquid force
    . You can check it out at wakeboard liquid force
    .

    Also, as a special bonus for your visitors, i want to tell you about a site that is giving away a FREE Sony DVD Handycam! Just click the link below and enter your Zipcode to see if you qualify.

    FREE Sony DVD Handycam

    ResponderExcluir

Diga lá...