[Lá vai o Valente com suas duas paixões mais uma vez...]
De Génios e Loucos
Mané e a fila de Joões
Da última vez que estive no Brasil, um dos meus amigos de adolescência ofereceu-me o livro “Estrela Solitária” sobre a vida do genial futebolista brasileiro Garrincha, a quem muitos chamavam o “Anjo das Pernas Tortas”. Disse-me ele: “Toma. Conta lá para eles em Portugal que um dia existiu o Mané.”
Poucos em Portugal saberão hoje em dia quem foi Mané Garrincha. Mas entre os que sabem, muitos ainda consideram-no o maior génio criativo que o futebol alguma vez gerou. A sua celebrada arte da finta era a própria antítese do conceito de “finta”, no sentido em que esta implica o logro, o engano, o ludibriar do opositor. Garrincha não fazia nada disso porque Garrincha, com suas pernas tortas, na mais improvável combinação física com que um atleta já se apresentou ao mundo do desporto, fazia sempre o mesmo: saía pela direita. Os defesas já o sabiam, seus colegas já o sabiam e o público também. Garrincha parava à frente do seu opositor, mirava-o, atiçava-o e... saía pela direita. E ninguém o apanhava, a evidência do gesto a tornar ainda maior a humilhação de uma legião de defesas a quem Garrincha chamava singelamente de “joão”, não importando que fosse um monstro sagrado de uma qualquer poderosa selecção nacional, ou o pé-descalço do campinho onde o descendente de índios disputava suas “peladas” com os amigos. Para ele, eram todos “joão”. Garrincha coleccionou “joões” ao longo da sua carreira e fez história ao conquistar praticamente sozinho o Mundial de 1962, no Chile. Dizem os especialistas que só houve dois mundiais cuja conquista pode ser atribuída quase em exclusivo à genialidade de um só jogador: a de 1986, no México, que Maradona levou para a Argentina, e a de 62, que pertenceu a Mané.
Mas se Pelé é o Rei do Futebol, Mané Garrincha foi o seu príncipe negro. O passeio iluminado de um é a viela escura do outro. O primeiro subiu aos píncaros da fama, envergando o manto dourado das estrelas cintilantes. O segundo afundou-se no fundo das muitas garrafas de álcool que lhe afogaram o brilho da sua estrela solitária. A história não tem complacência para os que traem o seu destino e hoje, apesar de idolatrada pelos eruditos da bola, a memória da sua magia não vai além das estantes mais ou menos empoeiradas dos poucos que vêem no desporto algo mais do que uma forma de exercitar o corpo, de divertir os sentidos ou de ganhar a vida.
As pernas tortas do Garrincha
E porquê esta conversa toda sobre futebol? Será da febre do Euro? Também, certamente. Mas o motivo principal tem a ver com a recente leitura da biografia do australiano Michael Peterson, que estará para a prancha como Garrincha está para a bola. MP dominou o surf mundial na pré-alvorada do profissionalismo. E dominou-o como só está ao alcance dos grandes. A sua mera presença era o suficiente para desarmar os seus rivais. Estratega implacável, mestre do jogo psicológico, tecnicista peculiar que criava para si pranchas que ele e só ele conseguia domesticar, e com elas desmoralizava toda uma geração que procurava encontrar o seu espaço no novo jogo que se começava a desenhar. Mas, tal como Garrincha, MP tinha outro lado que as câmaras não mostravam. Não tinha a jovialidade nem a alegria expansiva do jogador brasileiro. Era uma personagem sombria, misteriosa, de presença intimidadora e olhar incisivo. O abuso intensivo e extensivo de drogas ajudou a disfarçar uma esquizofrenia tardiamente diagnosticada e enquanto as habituais vítimas da sua genialidade técnica e competitiva, os seus “joões”, triunfavam pelo mundo fora e cimentavam o nascimento do circuito mundial de surf com seus dólares, fama a rodos e reconhecimento internacional, o antigo “Rei de Kirra” afundava-se num remoinho de alucinações, paranóia e depressões.
The Morning of the earth cutback - referência
Talvez a história de MP tenha um final mais feliz que a de Mané. Para começar, ao contrário deste, Michael está vivo. Já não surfa e, nos seus 50 e poucos anos, vive dependente da sua mãe. Mas durou o suficiente para ver publicada a sua biografia e para ver o seu nome renascer das cinzas, ascendendo da categoria de lenda do passado à de mito vivo. E, porque cada desporto tem o ídolo que merece, viveu o bastante para ouvir da boca do próprio Kelly Slater, o “rei” maior do desporto dos reis: “MP, tu és melhor que eu”.
MP vira em Sunset a la Kanaiaupuni
Numa edição em que falamos do ensino do surf, pergunto-me se a educação sobre o passado do desporto não deveria fazer parte, senão do currículo, pelo menos das sugestões de leitura que os professores deveriam passar aos seus jovens alunos. Quanto mais não seja, porque uma das características determinantes das antigas “tribos” às quais os surfistas pediram emprestado a imagem comunitária, era o respeito pelos mais velhos e pelo conhecimento que estes carregavam dos seus povos, da sua história, dos seus génios e dos seus loucos. -- JV
Mané Garrincha é conhecido em Portugal por algumas pessoas noutras praias (http://a-praia.blogspot.com/2004_04_01_a-praia_archive.html) que, como eu nunca o viram jogar, através do tal livro de Ruy de Castro, tendo a sua mulher, Elza Soares inclusivamente actuado em Portugal muito recentemente. No entanto existem alguns fiéis doentes que se lembram do jogador e desse pormenor que fazia toda a diferença do mundo, as suas pernas tortas. Inclusivamente um dos seus filhos chegou a jogar no terceiro grande clube de Lisboa, Os Belenenses na década de 80, sem muito sucesso diga-se. A história do futebol em Portugal também tem a sua galeria de génios e loucos, esses sim, certamente totalmente desconhecidos no Brasil. Um dos casos mais fascinantes é o de Victor Baptista, um contemporâneo de Eusébio, que jogava na mesma altura no Benfica que declarava para quem quisesse ouvir que jogava mais e melhor que o humilde moçambicano/ português. Algumas histórias alimentam a lenda diziam que este depois dos treinos dava voltas contínuas a altas velocidades no seu descapotável ao Estádio da Luz para “secar o cabelo” ou a mais célebre de todas, quando mandou parar um jogo porque perdeu o brinco e ofereceu publicamente uma recompensa para quem o encontrasse na relva (ou gramado se preferirem). “O Maior” com gostava de ser chamado na altura (isto no auge do Eusébio, ousadia pura) teve infelizmente um problema com drogas duras bastante grave e acabou os últimos dias como coveiro, na miséria antes de morrer devido a uma overdose. Génio, louco, humano, brilhante, autodestrutivo, Victor Baptista foi tudo isto. Tenho pena que grandes jogadores portugueses do passado recente (estes sim que já vi jogar) não sejam conhecidos no Brasil com Paulo Futre (maior ídolo actual capitão do Real Madrid Raúl) ou Fernando Chalana (aquele que Figo afirma ser o melhor jogador que viu jogar).
ResponderExcluirPeço desculpa pela extensão do comentário, mas ao falar de surf e futebol é difícil conter as palavras e emoções.
Já agora podiam-me dar-me qualquer referência dessa biografia do Michael Peterson.
Um abraço
Tiago
Amizade,
ResponderExcluiro livro do MP é da editora Harper Sports, www.harpercollins.com.au
O autor, Sean Doherty.
A leitura, caríssimo, essencial
abrazzo
Julio