quarta-feira, maio 29, 2019

O Surfe antigo era mais inteligente




O leitor já conhece minha admiração bovina pelo Nélson Rodrigues. Uma devoção que escorre pelo canto da boca cada vez que batuco essas teclas e percebo a distancia solar que nos divide - eu e Nelson.
Desafio qualquer um a pegar num livro de crônicas do Reacionário (apelido carinhoso…) e resistir à vontade de sair escrevendo e opinando sobre tudo e todos, como se não houvesse tempo a perder.
A frase que me pegou no predileto da estante (À sombra das chuteiras imortais : crônicas de futebol / Nelson. Rodrigues ; seleção e notas Ruy Castro. — São Paulo : Companhia das. Letras, 1993.) foi tão boba quanto absolutamente atemporal, 

O futebol antigo era mais inteligente.

O texto protesta contra a parada do campeonato carioca durante o verão e despeja nostalgia do tempo que o carioca vestia-se (sempre! mesmo no verão) dos pés à cabeça como na Europa.
É divertidíssimo e merece ser lido (leia abaixo).

Na última sexta feira terminou a 3ª etapa do CT da WSL em Keramas, Bali, enquanto Jakarta ardia, graças a (re)eleição do presidente Joko Widodo, derrotando o general Prabowo Subianto pela segunda vez consecutiva.
O general, casado com uma das filhas do falecido ditador Suharto, ficou inconformado com o resultado e seus eleitores (quase 60 milhões!) foram para as ruas protestar, alegando suposta fraude - lembra alguma coisa ?
Eleição na Indonesia é coisa tão séria que a BBC estima 270 mortes na exaustiva apuração dos votos - https://www.bbc.com/news/world-asia-48083051

Se o julgamento da WSL fosse levado até as últimas consequências em Bali, podem apostar que teríamos fogo no palanque, como acontecia no Festival de Ubatuba nos anos 70.

Sorte nossa o surfe não despertar essas vibrações negativas nas pessoas - pelo menos não ao vivo.


O Surfe antigo era mais inteligente

O melhor surfe feito em Keramas foi antigo.
A começar pelo mais bem realizado, falo da Steph.
Quero que Kanoa, Slater, Filipe, Flores, todos eles vão se roçar nas ostras de Uluatu.
Quem surfou o fino foi a Steph…
A nota 10 foi de uma sutileza, tão feminina e delicada quanto bruta, verdadeira contradição do que é o surfe em 2019.
No momento em que se discute o que merece ser julgado como excelente, quando reavaliamos todos tipos de aéreos e colocamos as cartas na mesa para, juntos, (re)descobrir o que vale nota e o que não vale. Nesse momento crucial da evolução do julgamento - e por que não do surfe profissional como um todo ? - vem a Steph e mostra o que já sabemos desde que o surfe é surfe.
Uma onda bem surfada é imbatível.
Mark Richards diz isso já faz mais de uma década, o surfe bem feito sempre vence.
E hoje no Tour quando voce fala de surfe bem feito, com todas suas sutilezas e sofisticações, ninguém se aproxima da Senhorita Gilmore.
Acham que exagero ?
Justo.
Permitam que eu defenda um pouco mais o meu ponto de vista.
Existe o surfe conquistado pelo talento absurdo e uma forma física exuberante como Medina, um verdadeiro atleta.
Toledo traz um tipo de surfe acrobático quase circense ao tour, e isso é fundamental para o esporte seguir em frente como competição.
Temos Slater, representando a longevidade, o eterno desafio entre o velho e o novo.
Posso escolher cada um dos surfistas e novamente tecer loas, um a um.
Mas não.
Ficamos na Steph.
Ela simboliza toda história do surfe em poucos movimentos e sua nota 10 em Keramas foi exatamente isso, a elegância traduzida em tradição.
Nós não vimos um homem durante todo evento atrasar dentro do tubo como Stephanie.
Nenhum.
Se quiséssemos partir para uma analogia estética e histórica, Steph estaria simulando Lopez, MP, Rabbit, Shaun, Curren, Carroll, Slater e Irons, tudo duma vez só - numa única manobra.
Antiga!
Atrasada e tubo.
Pacific Vibrations.
Morning of The Earth.
Performers.
Momentum.
Modern Collective.
A onda da Steph entraria em qualquer um desses filmes.



Akila

5’8'' ou 5'9''Alguma coisa em torno de 18 3/8″ e 18 1/2″ talvez 2 1/4″na borda,
Outro capítulo interessante da etapa de Bali foi o desempenho do bom velhinho, Kelly Slater - aquele que já estava acabado e deveria sair de fininho, sem chamar atenção.
O Careca optou por um quiver inteiro de Akila Aipa, seu amigo de outros carnavais - 30 e tantos carnavais…
A escolha vai muito alem do que nossos olhos podem ver, a quase perda do amigo Sunny Garcia tem um peso imenso na decisão.
Depois do choque coletivo, terrível realidade do Sunny tentar tirar a própria vida, o abalo foi sentido por todo universo do surfe.
Mas na WSL, precisamente naquela pequena galáxia do surfe profissional, ninguém foi tão próximo do Sunny quanto Kelly.
O efeito é devastador.
E duradouro.
Todas ligações que não fizemos para dizer qualquer bobagem e reforçar o amor e a amizade pelo camarada que lutava contra depressão.
A libertação pode estar numa última vitória para dedicar ao amigo, ou mesmo em cada disputa entre passado x presente x futuro.
Caso da bateria KS X FT.
Afirmo sem medo que a única batalha importante de fato em Bali não foi a dos manifestantes em Jakarta.
Percebam o exagero, Slater contra Toledo foi até agora a única bateria que interessa em 2019.

Novo

Toledo fazia as maiores médias e não só…
Todas ondas que ficariam na memória até a terceira quarta de final eram do Filipe.
Keramas é a onda do Filipe - mais ainda que Trestles ou J. Bay, diria eu.
Para além da velocidade e dinamismo, Toledo busca novos ângulos instintivamente, por puro talento bruto e porque ele simplesmente pode fazer o que ninguém mais faz, como no 8.60 nas oitavas contra Callinan, possivelmente a onda mais mal julgada de todo evento.
Na primeira manobra, Toledo inventa um novo jeito de atacar a onda, rasga embaixo do lipe e volta encoberto pelo próprio leque monstruoso de água com gotas grossas.
Emenda direto num aéreo perfeito, que começa numa cavada clássica, elástica e profunda.
Revejam a onda.
Aquilo era um 9 alto - quiçá um 10!
Colocando em perspectiva o surfe do Toledo em 2019, o que ele faz hoje é mais ou menos a mesma coisa que Slater fazia em 92/93, inovação e reinvenção.

Velho

Bode velho, brincou Ricardinho ao comentar (em português) uma postagem do Kelly Slater no Instagram.
Seus truques não funcionam mais, desafiou o pai do Filipe.
Aparentemente, funcionam sim.
O intervalo entre as oitavas e as quartas roubou parte do embalo que vinha Filipe e permitiu que Slater empurrasse toda responsabilidade da vitória para o brasileiro.
Durante a bateria, Toledo foi sugado para o jogo do Slater, bem observado pelo Potter, uma disputa de tubos. Anulando o que Toledo poderia render melhor e entortando a lógica do jogo.
Como nas partidas de volta das semi finais da Champions.
A glória do esporte é sua imprevisibilidade.
Com 47 anos de idade, Slater é a encarnação do improvável e, por que não ? Do impossível.
O coroa ocupa a 9ª colocação no ranking da WSL, na frente do atual campeão mundial, Gabriel Medina.

Ouro

Ano passado alguém apostou em Kanoa Igarashi para a disputa do título mundial no ano que precede a Olimpíada no Japão.
Fazia, e ainda faz, todo sentido.
A Asia é o grande mercado para o crescimento da WSL como marca no futuro próximo e Japão tem um histórico longo de fidelidade com o surfe profissional.
Sem apostar em conspirações, é perfeitamente aceitável que um surfista mezzo Japa e mezzo Norte-Americano, fluente em 5 idiomas, treinado por um australiano, patrocinado por um gigante do mercado de bebidas energéticas austríaco e por mais meia dúzia de empresas multinacionais, todas entre os líderes de mercado de cada segmento (Quiksilver, Red Bull, Oakley, Audi, Sharp Eye, Visa, Kinoshita Group and Dior).
Seu perfil na pagina da WSL nos informa que Kanoa tem uma equipe da TV japonesa o acompanhando no circuito e ele está ganhando fama na China, Taiwan e Coréia.
Dito isso, achei que ele perdia pro Kelly na semi e pro Jeremias na final.

Antiguidade é posto

Peço que me perdoem por não ter escrito sobre Bells, o horário infame bagunça não apenas os dias do campeonato como também acumula tarefas para os seguintes.
Em Bells ficou uma pergunta no ar que ainda permanece,
Quando Medina vai começar a vencer e quem será capaz de para-lo ?
A volta do john Florence já começou a mexer com a rotina dos brasileiros no topo do pódio.
Esqueçam a narrativa óbvia dos supostos desejos da WSL (como eu mesmo faço acima!) e concentrem nas vagas olímpicas.
Medina e Slater fora.
Já imaginaram ?
Entre os top 10 apenas um australiano, em 10º!
Temos muito o que conversar durante esse ano.



ENCOURAÇADO DE SOL

Nelson Rodrigues

Amigos, ao contrário do que se pensa, o Brasil nem sempre foi um país tropical. No tempo de Machado de Assis, ou de Epitácio Pessoa, ou de Paulo de Frontin, o sujeito andava de fraque, colete, colarinho duro, polainas, o diabo. As santas e abomináveis senhoras da época se cobriam até o pescoço. Em suma: — o brasileiro vestia- se como se isto aqui fosse a Sibéria, o Alasca, sei lá.
Hoje não. Procura-se um fraque e não se encontra um fraque. Os mais vestidos andam seminus. No passado, o sujeito que entrasse sem gravata num bonde — era de lá expulso a patadas. E, agora, anda-se de biquíni nos lotações. Um sol hediondo vai derretendo as catedrais e amolecendo os obeliscos. Não há dúvida: — somos finalmente tropicais.
Olhem as nossas praias. A nudez jorra aos borbotões. Em 1905, o turista que visse Machado de Assis havia de anotar no caderninho: — “Este é o povo mais vestido do mundo!”. Em nossos dias, o mesmo turista havia de escrever inversamente: — “Este é o mais despido dos povos!”. Pois bem. E, no entanto, vejam vocês: — ocorre aqui uma reação curiosíssima.
Sim, diante do calor, o brasileiro esperneia e pragueja. O que fazem com o futebol chega a ser burlesco. Em pleno verão, suspendem os clássicos e as peladas. O Maracanã cerra as suas portas. Todas as botinadas são proibidas. E ninguém percebe o absurdo. O justo, o lógico, o adequado é que um craque tropical,
como o nosso, jogue no verão e descanse no inverno.
Não me venham com o argumento de higiene. Para um tropical,
a higiene é um sol homicida. E se reclamamos, se esbravejamos, se
uivamos contra o sol, cabe uma dúvida honesta. É possível que sejamos tropicais por engano. E, nesse caso, certo estaria Machado de Assis ao pôr fraque e galochas, assim desafiando o hediondo sol do meio-dia.
O futebol antigo era mais inteligente. O jogador entrava em campo e os jogos caniculares tinham mais élan, mais saúde, mais euforia. Por exemplo: — em 1910, ano em que o Botafogo foi campeão. Naquele tempo, o Brasil era tropical sem o saber. Lembro que um craque alvinegro, famosíssimo, jogava com uma vasta toalha felpuda enrolada no pescoço. Quarenta graus à sombra e ele varava o campo como um centauro de cobertor.
E nunca houve, no velho futebol, nenhuma insolação. Pelo contrário: — o craque tinha uma resistência de hipopótamo. Na célebre gripe espanhola morreu todo mundo. A mortandade foi pior do que a da primeira batalha do Marne. Mas como eu ia dizendo: — uns morriam e outros eram enterrados. E, quando o sujeito relutava em morrer, era liquidado a pauladas como uma ratazana. Muito bem: — só os jogadores de futebol sobreviveram.
Não havia Departamento Médico nos clubes. Mas o sol potencializava o jogador e o protegia contra o tifo, a malária e a peste bubônica. Sim, bons tempos em que o Brasil não era ainda tropical ou por outra: — não sabia que o era! O craque usava bigodões imensos, carapuça e mais: — seus calções escorriam até as canelas. Lindo, lindo. E assim, encouraçado de sol, abarrotado de calor, o craque ou o perna-de-pau eram uma bastilha deslumbrante de saúde.
[O Globo, 13/4/1964]








Um comentário:

  1. Anônimo12:53 PM

    Análise cirúrgica dos fatos hein Júlio. Como sempre, a leitura das suas crônicas é a cereja do bolo. A Steph é de outro mundo. Achei que o 7 da Silvana foi baixo, comparado com a onda da Sally, que fez duas manobras iguais. Abraço. Bruno Rozenbaum.

    ResponderExcluir

Diga lá...