
Foto de quem mais ? Ryan Tatar!
[Tempestade em copo d'agua>Revista Surf Portugal # 196>Maio 2009]
Uma revista brasileira me pediu que fizesse o exercicio de imaginar o que seria o surfe daqui a 20 anos.
Fui breve, o homem tem que sobreviver.
Ainda não estou seguro se otimista ou pessimista, minha impressão é que o surfe vai sumir das praias...
Mas não tão rápido.
Escrevo completamente fincado na experiencia pessoal e tudo indica que do jeito que a coisa vai, praia, do jeito que conhecemos, vai sair de moda.
Explico: Dia sim, dia não, jornais alardeiam uma futura nova catástrofe causada pelo aquecimento global que sempre desagua na porta da nossa casa.
Minha sogra, que tem uma queda pelo susto e medo, pensa seriamente em se mudar para as montanhas cada vez que ouve no radio sobre mais uma possibilidade de Tsunami, terremotos e chuva de gafanhotos.
Enquanto isso, percebo que uma nova leva de surfistas, nem todos jovens, principalmente os mais velhos, na faixa entre o 30 e 40 que começaram no surfe mais tarde, cada vez mais preferem a experiencia do DVD, do Playstation e dos magníficos livros lançados como pipoca fresquinha - como ficam bonitos na mesinha de centro, não ?
A turma hoje gosta menos de viajar na incerteza, afinal de contas temos 512 tipos diferentes de previsão, assim como não suportam nem ouvir falar de surfar em mares distantes sem hotel reservado, guia profissional, chofer, GPS, personal fotografo e videomaker e, natural, adesão absoluta registrada por imeios de pelo menos 50% de ondas perfeitas ou dinheiro de volta.
Não sei se em 20 anos, mas logo logo a tecnologia vai superar esse negócio estranho de estar na praia.
Nada de sujar os pés de areia ou ficar sujeito aos raios ultra-violeta, ou água salgada que mancha e suja tudo, esses incomodos.
Como nesses wii, o sujeito vai vestir seu wetsuit, montar na sua Al Merrick ultimo tipo, parafina com composto de super bonder e surfar como nunca...em casa!
Sem pratica, sem horas, dias, meses, anos a fio tentando o arduo equilibrio em cima da prancha.
Nada disso, sem humilhação.
Basta escolher a onda predileta, fundo de coral ou de areia e, dependendo dos plug-ins, sentir o molhadinho do mar, ouvir o estrondo da onda rebentando, simular um caldo em Cortez bank, tudo isso no conforto do quarto.
O charme do surfe, sua completa imprevisibilidade, não funcionará em tempos praticos, repletos de imediatismos e certezas.
O que conhecemos por aventura vai se dissipar em pacotes turisticos bem bolados, sempre na companhia de alguem cheio de historias pra ouvirmos e poder contar quando chegar em casa - pagamento em 24 suaves prestações.
Parece ruim, não ?
Por outro lado, as praias estarão vazias, a vida cada vez mais selvagem na beira do mar, como antes da especulação - quem vai querer estar perto da maior ameaça do planeta ?
Surfistas serão um bando de proscritos que lidam com os humores da natureza, essa mãe tão cruel.
As previsões não vão servir de nada,ondulações virão de todos lados, por qualquer motivo, um descolamento da placa tectonica em algum lugar pertinho pode transformar uma onda mediocre num superbank da noite pro dia.
Vejam o que aconteceu em Nias.
Depois da catastrofe terrivel, as revistas chegaram a conclusão que a onda que já servia de referencia para perfeição ficou ainda melhor.
Terrenos por toda extensão do litoral despencarão de preços, finalmente proporcionando a nós, surfistas, a oportunidade de comprar seu pedacinho de ceu na beira mar.
Temo pela agua gelada, desde que o aquecimento global derreterá geleiras e as correntes devem se intensificar.
Nessa altura a tecnologia dos wetsuits já terá resolvido nosso problema com frio.
Não teremos mais revistas, ou filmes, sites, essas frivolidades do passado.
Fotos serão apreciadas as escondidas, a opinião publica vai engolir uma tese de avançados cientistas da metereologia que culpará os surfistas pelo desequlibrio do temperamento dos mares.
Sem causa aparente, me vem a cabeça a experiencia que tinhamos com o LP, aquele formato antiquado que hoje atende pelo simpatico e comercial nome de vinil.
Voce aguardava ansiosamente pelo lançamento do disco, lia noticias a respeito, construía uma enorme expectativa e um belo dia alguem tocava uma musica na sua radio preferida.
Dali em diante, a ansiedade aumentava gradativamente a cada ouvida no K7 onde voce tão cuidadosamente gravou a canção solitária. Visitas diárias a loja de disco para segurar aquele discão até que uma caridosa alma doasse alguns trocados para a redenção final: aquisição da bolacha.
Cabia bem debaixo do braço, feito uma prancha.
O ritual de coloca-lo pra tocar quando chegava em casa, roda de amigos curiosos por dividir as impressões na primeira escutada, mudar o lado A pro lado B, a carícia da agulha nos sulcos...
A ultima vez que fiz isso ja deve ter uns 25 anos.
Hoje é baixar o MP3 nos blogues de musica (obrigado por tanta alegria, Bolachas gratis!) e pronto.
Nem ordem as musicas respeitam mais - shuffle!
Sem moral nem lição, vou ficar com uma frase do dramaturgo Harold Pinter que inicia o filme 'O Mensageiro' (The Go between - 1970) de Joseph Losey, que roubei dum texto do Ivan Lessa na BBC Brasil pra encerrar:
"O passado é um país estrangeiro; lá, eles fazem as coisas de modo diferente."