
Quantos títulos voce ve nessa mão ?
A imagem que me vem na cabeça é aquela épica disputa de onda entre Shane Beschen e Kelly Slater.
Foi um golpe duro no surfe profissional de 1996, quando as pessoas acreditavam num mundo melhor, livre de conflitos, pleno de diversão inocente e descompromissada, nosso ‘flower power’, que vendeu bermudas e camisas floridas como água e catapultou nossa indústria para o estágio de ‘milionária’ (barulhinho de moedas caindo no chão).
Sabem quando a tensão é tão grossa que voce precisa duma espátula pra tirar da frente ? A sensação era essa.
O mar nem estava grandes coisas.
Tinha esse tamanho ainda não estabelecido de meio metrão, metro, metro e meio, mexido pelo vento que entra depois das 9, 10 horas lá na Califórnia, mais precisamente na praia de Huntington, no lado sul do pier, direitas e esquerdas sem a menor graça.
O campeonato tinha um nome bem americano, imponente, estrondoso: U.S. Open of Surfing.
Mas a história não tinha começado ali e sim lá pelos idos de 1982 quando um pirralho magrelo de Cocoa Beach, Major Nélson e Jeanie, aparece insolente na Califórinia e arrasta o título nacional de juniores com 11 anos de idade, justo em cima de quem ?
Sim, ele mesmo, outro magrelo, nativo da Califa, cabelos loiros, loiros, quase brancos, promessa da terra que tinha dado ao mundo e ao Estados Unidos o Curren.
Era leste contra oeste, tipo filme de bang-bang.
Beschen surfava com o peso da linhagem de 60 anos de surfe californiano, Slater era o retirante, saído dum lugar sem nenhuma tradição, sem história, sem ondas- um deserto de referências.
Os dois são de fevereiro de 1972, KS de 11 e Shane de 18, uma semana mais novo.
Fugi muito do assunto, sejam pacientes, peço.
Faltava tempo suficiente para começarmos a roer unhas, Beschen liderava com alguma folga, praia lotada numa dessas multidões que confundem o espectador: 5000 ou 50000 ?
Série ao fundo.
É das grandes, quem pegar decide – bateria sem prioridade.
Como assim, sem prioridade ?
A ASP colocava uma bóia a uns 10 metros de distância da arrebentação que determinava quem tinha o direito de escolher a onda, ou seja, não bastava chegar lá for a, tinha que remar mais um pouco e dar a volta na bóia. As corridas pela prioridade eram um clássico do nosso esporte.
Teve uma do Currem com o Occy ali mesmo, no OP de 85, acompanhada pelas lentes do cinegrafista bem de pertinho…Não existia um menino aspirante a surfista profissional que não vestisse a camisa de um do dos dois.
Lá vou eu, correndo do tema como um jet ski acelerado saindo de dentro da explosão duma gigantesca espuma em Jaws.

Por que uma foto do Irons aqui ?
Nessa altura, pelo que descrevi até agora sem chegar onde queria chegar, devia faltar uns 5 ou seis minutos pra soar a corneta.
Bateria sem prioridade. Beschen, muito mais bem colocado do que Slater para apanhar a onda, rema com a confiança demais, quase arrogância.
Parecia dizer: A nêga é minha, ninguem tasca.
E naquela época nêgo não tascava mesmo.
Era um tal de divertir pra cá e amizade pra lá que dava enjoô, tudo fingindo um certo descaso, para não pegar mal e destoar do discurso afinadinho.
A velha guarda estava em retirada e, voces sabem, a velha guarda era muito ‘bad vibe’, davam valor demais ao mundo material e não enxergavam que o surfe é uma parada espiritual, manja ?
Elkerton, Potter, Lynch, Hardman, Ho, só queriam ganhar, ganhar, ganhar, sem alma, saca ? Pouco ‘cool’, vende pouca camisa florida.
Repentinamente, quando tudo parecia se encaminhar para um desfecho feliz e politicamente correto, Slater desnudou a hipocrisia que reinava e deu um choque de realidade na turba.
Vil, como apenas humanos somos capazes de ser, Slater percebeu que Beschen cometeu o pecado capital que Tomás de Aquino considerava o mais grave: Soberba.
Foi um baque.

Voce pode se tornar um surfista assim. Pergunte-me como.
Todos testemunaram o rapaz bonzinho, idolatrado por todos pela esportividade e caráter imaculado, fazer uma sujeira com um companheiro de profissão, Slater remou pra trás do Beschen com um apetite para vitória e uma determinação que desafiava a moral e bons costumes vigentes, Beschen em nenhum momento acreditou que seu adversário seria capaz de um golpe tão baixo.
Foi.
Beschen deve pensado: ele nem é louco de se colocar numa situação dessas…
Esqueceu de 82 e de 86, quando disputaram o título americano em Sebastian Inlet.
Kelly não esquecera, nem engolira, sua derrota em 1994, praia lotada tambem, naquela mesma areia, por isso, esqueirou-se pelas costas de Beschen e virou, ágil como um felino, deixando o californiano em interferência.
O mundo ficou estarrecido. Juízes se recusavam a aceitar tal gesto desonroso, ouviram-se vaias, caretas, pais tapavam os olhos dos filhos pequenos na arquibancada, primitivo!, gritavam.
Kelly venceu e somente isso o interessava. Se sua imagem ficasse arranhada, ele os faria esquecer vencendo ainda mais.

O gosto da vitória
Esse era o espírito em 1996 e em 86 era ainda pior, 76 o pau comia solto e em 66 quem não arriscava, não existia.
Hoje Andy é considerado vilão por parte da imprensa pela atitude espontânea que lida com situações tensas, distante da máscara de bom garoto predileta pelas estrelas.
‘Vamos acabar logo com isso’ disse Irons pro Slater quando caminhavam para a fatídica final em Jeffreys Bay.
‘Destroe ele, Andy!’ Gritou embriagado Fanning.
Isso é uma arena de competição, tem leões lá fora.
Lembrar dessa ?
Na regressiva, Slater precisa quase dum 10, Andy esperava o cinco, quatro, tres, dois, um já areia, título em mãos, pronto para seu gole triunfal na latinha de Fosters.
‘Quer dizer que agora é assim ? voces julgam para o público ? deram a nota pro cara antes dele ficar em pé…’.
Andy Irons é último rebelde da ASP, o único que resiste fiel ao seu ideal: vencer e vencer.
Todo resto tenta justificar a permanência no mundo maravilhoso do WCT com frases de efeito, apelando para mais gasta das desculpas. Sim, voce acertou.
Se Kalani Robb tivesse um Andy Irons na época dele para motivá-lo a desafiar o fenômeno, talvez chegasse lá – assim como Dorian, ou Machado.
Diga-se de passagem, Andy tinha tudo para tornar-se um Kalani, mas um fogo queima dentro dele que o empurra para vitória, custe o que custar.
Irmão Bruce e coleguinha Wardo não tem esse sangue correndo nas veias, basta saberem-se, ou anunciados, tão bons quanto – perde o surfe.

Seu sólido relacionamento com Lindy é refletido nos seus resultados.
Slater sabe disso e logo quando ganhou seu sétimo, pensou em Andy: ‘Tenho que comprimentar esse cara…’, disse KS7, agora KS8, honesto e sádico ao mesmo tempo.
Foi o mesmo cara que o arrasou em 2002, numa semi final de resultado controverso, em Hossegor, antes do primeiro título de Andy, quando Slater achava que era só voltar e colher os louros.
Precisando de um 8.75 para virar contra um revigorado Slater, Irons surfa uma onda média de maneira contida, tres manobrinhas e uma finalização pouco eletrizante, um 6.5, quando muito um 7…
Nota anunciada: 9.
‘Me sinto mal, cara. Me sinto mal mesmo’, dizia entre os dentes Andy, eufórico.
‘O que devo fazer ? arremessar minha prancha nos juízes ?’ ponderava um Slater ainda sonolento, meio anestesiado pelo afastamento do circuito.
Desde sempre Andy escolheu Slater como referência e se beneficiou com isso.
Por outro lado, Slater demorou a entender que Irons não era feito do mesmo molde da turma que acompanhou nos últimos anos de WCT.
Andy pertencia a outra turma: Elkerton, Potter, Gerlach, Hardman, Lynch, Ho.
A batalha começava ali, 5 de Outubro de 2002, a alvorada do tricampeonato do havaiano e dos inacreditáveis oito títulos do Slater.
PS:
Naquele dia, um leonino de nome Neco Padaratz superou duas hérnias de disco, Luke Egan, Damien Hobgood e Andy Irons para conquistar o primeiro posto naquele evento histórico.
Alguma coisa aconteceu no meio do caminho e o desviou do trilho, mas Neco foi o primeiro dessa nova geração que surgia que não baixava a cabeça para Slater.

O triunfo no México fez KS8 entrar em estado de alerta.
Que graça teria o WCT sem esse cara ?