sexta-feira, junho 16, 2006

Desconexo


Leia a Bíblia


[Texto para Surf Portugal, escrito, vejam só, em 4 de Abril de 2001. O assunto fica velho.]

- É o futuro! Isso é o futuro…
Chico entusiasmava-se com as imagens que assistia, fresquinhas, do surfe rebocado por um Jet-ski na bancada de Phantoms, no Hawaii – seus olhos saltavam de espanto e deslumbre. Chico sentia-se profético nas palavras.
O vinho ajudava.
Um outro camarada na manhã seguinte tambem desgostoso com a já desgastada fórmula milenar de correr ondas, bradava à quem o quisesse ouvir em frente ao restaurante do outro lado da rua, em Rocky Point:
- Kite surf! Isso que é emoção… o vento, a vela, a prancha, a onda… aliás, nem precisa de onda, sabia ?
com o kite voce nem precisa de onda…
Aquela sentença era tudo que precisava ouvir para me convencer de que tudo está errado – enlouqueceram. Enlouqueceram de vez.
Disseram isso quando apareceu o wind-surf mas o surfe continou sendo surfe e wind-surfe continuou em frente como wind-surf.
Não importa o que aconteça, o surfe continua surfe - e ponto.
Mike Parsons ganha US$.60.000 descendo um “Mamute” de 60 pés surfada numa bancada remota, 100 milhas da costa Californiana.
Surfistas compram as digníssimas revistas de surfe atrás de mais informações, que direção toma nosso esporte.
É esporte ?
Matt George, na Surfer, diz que o futuro é no ar.
Mete duas dúzias de declarações de pessoas importantes do meio, que a gente admira, pesa a opinião do ídolo.
Kelly Slater, Sunny Garcia, Bruce e Andy Irons etc.
Como leitor e surfista mediano de 33 anos pensei:
- e eu nessa história ?
Aonde ficam os camaradas que nunca vão conseguir dar a sua voadinha, seu ‘Alley oop’, ou dropar uma onda de 60 pés em mar aberto ?
Vão interná-los numa clínica, especializadas em saudosistas, pessoas que não conseguem de jeito nenhum se desatar do passado, amarradas num tempo que teimam ser o único?
Nada disso.
Vão continuar surfando aos montes, sempre madrugando onde as ondas prometem alguma coisa especial, gastando o dinheirinho penosamente economizado em viagens onde nem sempre sabemos se vamos encontrar o que sonhamos ou não – independente da internet. Ainda que inventem os surf-camps com TV a cabo e ar refrigerado, sob encomenda para o indivíduo endinheirado e preguiçoso – nada disso vai influenciar na vida da maioria dos surfistas no planeta.
O surfe, puro e simples, com cordinha ou sem cordinha, de pranchão ou de pranchinha, com ou sem jet-ski, vai continuar sendo esse negócio estranho que nem é esporte, nem não é.
Não é arte nem não é.
Não é estilo de vida nem não é.
Nem é religião, tampouco.
Conheci uma quantidade grande de pessoas que surfavam durante minhas viagens, nos tempos das vacas-gordas – a maioria eram surfistas. E para cada um deles a relação com a prancha era diferente.
Compro a revista e leio que já não existem mais lugares para se surfar sozinho- pobrezinhos.
Quem dera eles conhecerem Grumari, Madeira, ou Nazaré* ( * aqui o João Valente coloca um nome de lugar em Portugal onde se surfa sozinho), esses lugares que os surfistas chegam sempre cedo na certeza de que aquele dia será inesquecível.
Nada muda no surfe.
Inventem formas diferentes de simular o prazer de pisar na prancha e deixar ela correr, sem motor ou vela, sozinha na onda, inventem wake-boards, skates, piscinas com ondas, quebrem a cabeça inventando!
O pirralho, com 12 anos, alheio ao frio do inverno vai continuar caminhando encolhido com sua prancha acima do peso, surrada, em direção ao Mar – sempre com letra maiúscula! – repetindo os passos do Duke, de Tom Blake, Dora, Curren e Slater.
Sempre vai ser a mesma merda…
Um vício maldito que não importa o que façam, ou façamos nós, não te larga nunca mais.
E assim surfistas continuam lendo revistas de surfe, se reunindo para assistir filmes de surfe, conversando bobagens sobre surfe alterados pelo alcóol ou outras substâncias que os surfistas adotaram como parte do ritual – e escrevendo coisas sem sentido como esse texto.



Capa simpática, né não ?

6 comentários:

  1. Anônimo11:06 PM

    Excelente!

    O que acho interessante nesse tipo de texto é que o camarada descreve, comenta e explica, mas não DEFINE o que é (ou seria) o SURF - aquele, o VERDADEIRO!

    O mais intrigante é que todos nós, lá no fundo, de alguma forma, sabemos... E é o que nos move...

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  2. pois é, desde pequeno procurei formas de ficar mais tempo dentro do mar. Bem pequeno brincava de lutinha com as merrecas que estouram na beira (engraçado que elas sempre chamavam suas "maes" para se entenderem comigo, depois jacare, isopor, "sonrisal", atéchegar ao surfe, onde conseguia ficar até 8, 10 horas dentro da água num mesmo dia, aprendendo a ser flexivel, movel, a interagir com o movimento daquele grande Ser o Mar, esse da letra maiúscula. Ter medo, respeito, histórias para contar, memórias e amigos. Será que é mesmo possível descrever o que é o "esporte", se ele é antes de tudo linguagem, forma de comunicação, identidade através da qual o homem e o mar se dissolvem um no outro atraves da arrebentação.
    abs

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  3. Anônimo8:00 PM

    Hoje, exatamente, olhei pela janela e vi que alguma coisa um pouco maior que meio metrinho já se anunciava na Barra da Tijuca - algo a se considerar, já que há uns 3 ou 4 dias não tinha NADA MESMO...

    Optei por um banquinho (e não "valinha") na Reserva. Duas horas e meia de surf: "séries" de 1/2 metro (o mar realmente estava subindo - calma, Presidente, é brincadeira!); água quente e transparente; vários peixes passeando naquelas ondinhas em pé, com parede; ventinho nem quente nem gelado; NINGUÉM no pico; prancha maroleira no pé. Pronto, estava feito o "estrago"!!

    Chego em casa, me olho no espelho e um sorriso naturalmente brota no rosto.

    O que explica essa felicidade espontânea e sincera num cara de 28 anos, 15 de surf e razoavelmente viajado?

    Surfar é ser criança pra sempre...

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  4. Anônimo7:09 PM

    eu acho o Matt George mentecapto.

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  5. Anônimo4:33 PM

    Esse gabiru é um chato...se acha engraçado além de poeta!!???
    Vai pegar onda seu chato!!!

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  6. Anônimo8:58 PM

    Ótimo texto.
    Só não sei se fico aliviado ou desanimado.
    Abraço.

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