segunda-feira, julho 12, 2004

Tempestade em Copo d’água 137

(Nessa altura ninguem mais aguenta ler que Tempestade em copo d'água é uma calúnia que mantenho na revista Surf Portugal, mas insisto, pois sempre aparece um desavisado.)






O primeiro registo gráfico de uma prancha de surfe é o desenho de um artista francês chamado Pellion, de 1819. Pelo menos é o que nos diz Tom Blake no seu indispensável livro, Hawaiian Surfriders, de 1935. Deitada no chão da aldeia, a prancha poderia passar por um modelo revolucionário, moderníssimo, se anunciada pela marca certa, com devida publicidade e embalada para impressionar a horda de trouxas. Trata-se de uma pranchinha pequenina – embora a perspectiva do desenho possa enganar – muito parecida com uma de tow-in ou wakeboard.
Neste últimos 40 anos, a nossa relação com esses objectos fálicos, que também servem para varar ondas, por baixo, por dentro e, finalmente, pelo alto, tem-se alterado em ciclos, feito a menstruação das mocinhas que agora dividem águas connosco, numerosas e bem-vindas. Passámos de mais de 10 pés de comprimento, nos anos 50, para 8 pés em meados de 60. Reduzimos ainda mais um pouco, para 7 pés, nos 70. Cortámos drasticamente para 5 pés nos 80. Até que os anos 90, a década da contenção sexual, viram as nossas amadas caírem num tremendo bacanal, com a volta das pranchas de 10 pés, por via do renascimento do longboard, a conviver com a invencibilidade as de 6 pés no surfe competitivo e com o revivalismo das singles, twinnies, fishes e sei-lá-o-quê-mais.




Tom Blake e seu compadre, Duke, exprimentando a última novidade que Rico trouxe para o Brasil depois de sua 100253ª viagem ao Havaí



Do alto dos meus 36 aninhos, aponto abaixo três momentos que mudaram a forma do surfe ser encarado e interpretado nestes últimos 23 anos de permanentes dúvidas entre a minha Hannon 9’11” circa 64, a Russo 5’6” de 83, a Henneck 5’11” de 2004, ou a Ricardo Martins 6’0” swallow de 1990.
Bells Beach, 1980. Mark Richards caminhava certeiro para seu segundo título mundial em 1980, livre, leve e solto na sua twin-fin, seguido de perto por Rabbit Bartholomew, Shaun Tomson e Dane Kealoha, todos em duas quilhas. Entretanto, um gigante chamado Simon Anderson – surfista que deu os seus primeiros passos aquáticos na praia de Nat Young – insatisfeito com seus resultados no circuito mundial da IPS (NR: International Professional Surfers, a antecessora da ASP), onde não conseguia uma única vitória desde que ganhara o Bells e o Coke em 1977, resolve que não irá continuar a ser escravo nem da monoquilha e, muito menos, da maldita biquilha, incapaz de conter seu poderoso surfe fincado no pivô do seu pé de trás. Tenta então um novo desenho de prancha com três quilhas estrategicamente colocadas para tentar conciliar a firmeza das single-fins com a versatilidade das duas quilhas. Pois o imenso surfista, munido do seu novo objecto, atropela todos adversários num Bells monstruoso e, semanas depois, vence o Coke em condições penosas de tão pequenas, deixando o resto do mundo a pensar que diabos andavam todos fazendo com aquelas jacas?



Big Simon num raro momento sem uma latinha de cerveja na mão



A imprensa, sempre desconfiada, questiona se o novo modelo realmente funcionaria nas ondas havaianas, o teste final. Por via das dúvidas, Simon ganha o Pipe Masters e termina em sexto no ranking de 81. Diz a lenda que na mesmíssima tarde da final do Masters, havia competidores de todo o mundo a gastarem seus parcos dólares (o circuito ainda não era um clube de milionários e para milionários) em telefonemas intercontinentais para os seus shapers dizendo: “Sabe tudo o que fizemos até agora? Esquece. Voltámos à estaca zero!” Dizem os factos que em 1982 mais de dois terços dos top 16 usavam três quilhas e que em 83, Tom Carroll, com um surfe totalmente baseado na força – uma característica da triquilha – torna-se o primeiro goofy a sagrar-se campeão mundial.


Curren na sua interpretação predileta: M.P.


França, 1990, Lacanau Pro. Logo após ter falhado no Japão o único título que para sempre há-de lhe faltar, o do campeão mundial amador (perdeu para o taitiano ex-jogador de futebol, Heifara Tahutini) Kelly Slater caminha apressado com uma pranchinha absurdamente estreita e fina pela área dos competidores, preparando-se para a semi-final com seu maior ídolo e, então, líder do circuito da ASP, Tom Curren. Até àquele momento, Slater fizera um verdadeiro estrago em Lacanau. Com um repertório de manobras inovador, batera Pottz e Wood, marcando as maiores médias do evento. O encontro com Curren precedia um anunciado confronto da nova ordem contra a velha. Curren tinha 26 anos (!), Slater 18… Tom Curren moeu Slater com sua famosa Maurice Cole 6’0”, super larga e grossa, o inverso do biscoitinho que o futuro hexa-campeão do mundo voava e rodava por aí. Dali em diante, ficou estabelecido, depois de quase dez anos, que existiriam duas vertentes no circuito mundial e, por consequência, em todo planeta: o new school das pranchinhas sensíveis e bobas contra o power surf das pranchas mais firmes e positivas. De um lado, Sunny, Egan, Occy, Pottz, Curren, Elkerton. Do outro, Slater, Dorian, Machado, Herring, Powell.
Bawa, Indonésia, por volta de 92. 10 a 12 pés de onda grossa para direita. Curren dropa com o centro de gravidade mais baixo do que o normal, vira com controle absoluto, agachadinho na prancha. Em seguida, entuba profundamente e some por três ou mais segundos e reaparece, glorioso, no rabo da onda, dançando extasiado… Nos seus pés, uma 5’8” shapada por Tom Petersos, irmão de uma de suas maiores influências, Michael Peterson. As imagens no vídeo da série The Search, campanha publicitária do seu patrocinador da altura, a Rip Curl (com quem, entretanto, assinou novamente este ano), eram, e continuam sendo, impressionantes. Tudo era possível a partir dali. Desde que Cheyne Horan tentara (e conseguira!), surfar Waimea Bay com uma 5’6” nos anos 80, ninguém tinha ousado tanto. Mas desta vez não se tratava somente de descer a onda, e sim de a surfar com o mesmo objectivo do equipamento adequado: arrepiar!
Assim foi anunciada a chegada do pós-modernismo ao mundo do poliuretano e fibra de vidro, abrindo caminho para a diversidade dos anos 90. Uma era onde o surfista, fosse ele um obstinado profissional ou um veraneante ocasional, passou a buscar nas pranchas velhas, referências e possibilidades para o século que virava a esquina. Skip Frye voltou à carga e, de Kelly a Irons, quem não provasse que se adaptava a qualquer prancha, assim como a qualquer tipo de condições de mar, não seria um surfista completo. O limite já não era mais o tamanho da prancha, mas o tamanho da criatividade.

julioadler@hotmail.com

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