segunda-feira, fevereiro 02, 2015

Rato

Rato e Reno Abellira trocando uma idéia


Amizade,
partiu mais um dos nossos.
Alguem já escreveu isso, surfista é muito careta.
Somos uns assustados.
Na teoria, admitimos a liberdade e irresponsabilidade.
Na prática, a conversa é outra.
O folclore é bonito à distancia, preferimos o insosso e inodoro de pertinho.
É mais limpinho.
No documentário Futebol, do Arthur Fontes e João Moreira Salles, uma obra prima do cinema nacional, Paulo Cesar Caju aparece como um personagem fascinante no terceiro episódio.

Timaço! Júnior Marvin, Jacob Miller, Paulo Cézar Caju e Bob Marley jogando uma pelada na casa do Chico Buarque em 1980


Caju é o típico malandro carioca, mas não é qualquer malandro, Caju foi um dos maiores jogadores da história e jogou nos quatro grandes times do Rio, Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco. Era extrovertido, vestia-se de forma excêntrica, era um esbanjador, mulherengo e festeiro sem par.
Foi tricampeão mundial no Mexico em 70 com a seleção brasileira do Pelé, Tostão e Jairzinho.
Enquanto assistia o documentário, ia percebendo as semelhanças entre o PC Caju e Paulo Proença, surfista que não tive a oportunidade de ver no auge, nos hoje tão celebrados anos 70.

Proença era conhecido como Rato, ou Ratão, voces sabem o que o apelido significa, não adianta explicar.
Quando comecei a pegar onda em 1981, Rato já era uma lenda passada, viva na memória, sem nada pra impressionar um garoto de 13 anos.
Isso, até ve-lo em ação num dia clássico no Quebra-mar, principal pico de surfe do Rio no meio dos anos 80.

Curioso é que não foi jeito alegre e expressivo do Rato surfar que me abalou, foi justamente o fato do cara entrar remando num dos picos mais bem protegidos pelos locais, passar batido por todo mundo, ir diretamente lá pra trás do pico, chegar, sentar na prancha, checar quem estava por perto e virar um tabefe na cara de um pobre coitado que não tinha a menor noção do porque de levar uma bifa.
Tem que respeitar, tem que respeitar, repetia o Rato em voz alta, olho rútilo, encarando todos nos olhos.
Ele não tinha dado o tapa por nenhum motivo aparente, naquela época o pau cantava dentro e fora d’água direto.
Aquele era o código que o Rato conhecia para dizer aos locais do Quebra mar que estava ali em paz, virou a mão na cara do sujeito haole.

Fiquei muito intrigado com a figura.
Anos mais tarde, fizemos uma viagem juntos para Florianópolis.
O Rato estava sempre sem camisa, calça de Bali, copo na mão, fosse no aeroporto, na praia, na noitada.
Chegando em Floripa, depois daquela conversa de avião que não chega a lugar nenhum, descobri que o camarada não usava carteira de identidade, nem de motorista.
Nunca tive essas merdas, dizia ele, tirando um passaporte meio amassado do bolso e mostrando o documento como um delegado federal numa batida de jogo ilegal.
Um careta como eu ainda se choca com essas coisas, esse absoluto desprezo pelas convenções e liberdade auto declarada.
Em duas horas de hotel na Joaquina, Ratão já estava devidamente acompanhado duma bela loira ao lado e uma gelada na mão.
Detalhe, ele não tinha levado um tostão!
Existem os caras que tem recordações fantásticas da vida alucinada que viveram nos anos 70 e existem outros que nunca deixaram de viver essas aventuras.
Proença era um deles - um dos últimos.

Outra história dele, escatológica, ainda nos anos 80.
Arpoador, último Waimea 5000, praia lotada, calçadão apinhado de gente assistindo o campeonato, dia de sol, final de semana.
Chamada para Paulo Proença, quinta bateria da primeira fase, eis que surge, meio afobado, o próprio Rato, na nossa frente.
Apesar de novo, eu herdara uma coleção de revistas Brasil surf e conhecia Proença por ter sido capa de duas edições.
A turma de amigos ao lado, conhecia o Rato dali mesmo, do Arpoador.
Naquela época, os luxuosos predios da beira da praia tinham belos jardins, muito bem cuidados por mestres em jardinagem, com flores de cores variadas e relva bem aparada e macia.
Ratão chegou nervoso, conferiu quem tinha por perto, viu aquele bando de garotos observando o campeonato com cara de bobos e, como ginasta ou contorcionista, fez um movimento tão rápido quanto imperceptível.
Avançou em direção ao primeiro jardim que encontrou, abaixou-se, arriou o calção e antes que o porteiro do prédio pudesse sequer esboçar qualquer reação, aliviou-se ali mesmo.
Pôrra Mermão, tava precisando mandar esse barro… Agora tô levinho!
Olhamos uns para os outros, sem saber direito o que dizer, ou o que fazer.
O porteiro xingava a todos, sem exceção, tivemos que correr, porque até explicar que não conheciámos o maluco daria muito trabalho.
Paulo Proença era um personagem digno de história em quadrinho.
Certa vez combinei de fazer, junto com o cartunista e humorista Allan Sieber um livro só com essas histórias que mais parecem inventadas do que reais.
As histórias que não são contadas por pudor, ou por cuidado.
O surfe atual é tão asséptico, tão perigosamente sem graça e orientado para o público abobalhado que as virtudes que nos fizeram diferentes de todo resto, hoje nos envergonha.
Caminhamos para o mais absoluto enfado com esse monte de frases repetidas, sem humor, sem imaginação e sem a mínima espontaneidade.
O futebol tem o Paulo Cesar Caju, nós tínhamos Paulo Proença.

PS - Por sorte, e mérito do Roberto Moura que bravamente produziu com seus próprios recursos uma série ainda inédita na TV, temos essa bela entrevista do Paulo Proença disponível no Vimeo da Massangana Filmes.

Em quase 10 minutos, Rato nos faz rir como sempre com suas histórias impagáveis.



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